Folha de S. Paulo
Anistia em nome da pacificação não trará paz
e dará força à direita autoritária
Os brasileiros confiam mais nas Forças
Armadas e na Polícia
Militar do que no Supremo Tribunal Federal; mais nas igrejas do que na
imprensa —porém, mais nesta do que nas redes sociais; e, definitivamente, a
maioria não confia no Congresso nem nos partidos. Esse resultado, apurado
pela Genial/Quaest na semana passada, confirma uma
tendência que a pesquisa Latinobarómetro vem mostrando desde 1995.
Aqui, a desconfiança nas instituições
políticas não é coisa passageira, mas percepção arraigada.
É verdade que não se trata de idiossincrasia brasileira. O fenômeno vem sendo registrado nas democracias ocidentais, e muita tinta já foi gasta para tentar explicá-lo, sem que se tenha chegado a confiáveis conclusões. Mas é certo também que, comparado naquele quesito aos vizinhos, o Brasil tem resultados além da média do subcontinente —aqui a descrença é maior— e se aproxima de modo preocupante a países de escassa experiência democrática e enorme instabilidade política.
A pesquisa Genial/Quaest mostra também que o
grupo identificado com o ex-presidente desconfia muito mais do STF, da imprensa,
do Congresso e dos partidos políticos do que os adeptos do presidente Lula ou
do que aqueles que não se alinham nem com um nem com outro.
Cidadãos descrentes do sistema político
sempre houve entre nós. Em sucessivas pesquisas, alguns deles se disseram
dispostos a aceitar um regime autoritário, dependendo das circunstâncias, ou
deram de ombros quanto ao tipo de regime político que o país adotasse. Em
conjunto, formaram o grande reservatório que, no passado, irrigou o populismo
de direita, de Janio Quadros a Fernando Collor. Sua existência não impediu que
a democracia funcionasse nem que suas regras ganhassem solidez com o passar do
tempo.
Com Bolsonaro, as coisas mudaram: pela
primeira vez a religião, a confiança nas forças da ordem e a desconfiança nas
instituições públicas e privadas foram deliberadamente mobilizadas contra o
sistema democrático. É sempre bom lembrar: o ex-presidente dedicou seu mandato
a deslegitimar as regras eleitorais; a espalhar suspeitas improcedentes sobre
as urnas eletrônicas; a ameaçar o Supremo Tribunal Federal e a urdir o golpe se
perdesse as eleições.
Atestam o mesmo desapreço pelo sistema de
liberdades a fracassada intentona para mantê-lo no poder pela força; o
incentivo às manifestações diante dos quartéis; o 8 de Janeiro; e, agora, o
conluio dos Bolsonaros com Donald Trump para pressionar a Corte Suprema no
julgamento dos golpistas; o teor das manifestações da extrema direita no 7 de
Setembro; e a retórica de seus líderes, nas ruas e redes.
Anistiar Bolsonaro e seus sequazes, em nome
da pacificação, não trará paz: dará sinal verde para a extrema direita
continuar explorando em benefício próprio a desconfiança de parte do público no
sistema político.
De resto, embora politicamente rachado, o
país não está em guerra; é a extrema direita que ataca a democracia. Defendê-la
exige, de imediato, respeitar a histórica decisão do Supremo; a médio prazo,
confinar politicamente os partidários do autoritarismo.
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