domingo, 26 de abril de 2009

Regras e normas

Marcos Coimbra
Sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE

Para não afrontar um país onde as pessoas recebem salários baixíssimos, os políticos fingem que ganham pouco, mas criam complementos disfarçados para aumentar seus vencimentos. As passagens são apenas um deles
Qualquer sistema político, em qualquer lugar, funciona pautando-se por regras. É uma coisa óbvia, mas, em dias como os que estamos vivendo, precisa ser lembrada.

Não o fazendo, poderíamos pensar que o noticiário revelaria o inverso, que o sistema político brasileiro chegou a tal ponto de anomia que é como se todas as normas tivessem desaparecido. A farra das passagens aéreas seria a mais nova e a mais escandalosa evidência dessa ausência.

O uso privado da cota de passagens dos parlamentares, que tanta indignação causou, não mostra que o Congresso se tornou uma espécie de casa de mãe Joana, onde cada um faz o que quer. Seu repúdio, que levou as lideranças das duas Casas a fixar novas regras sobre o assunto, apenas sugere que havia uma norma que precisava mudar.

Também como em todos os lugares, no Brasil existem regras escritas e não escritas que regulam o funcionamento do sistema político. As primeiras são explícitas e podem ser conhecidas por todos, enquanto as outras são menos.

Dessas, há algumas praticamente secretas, às quais apenas os iniciados têm acesso. Elas dizem respeito a aspectos nada nobres da vida das instituições e das pessoas que as fazem funcionar. Conta-se que Bismarck, ilustre chanceler alemão do século 19, dizia que “para preservar o respeito pelas salsichas e as leis, não devemos observar de perto como são feitas”.

Outras não são conhecidas pelo grande público, mas todos que atuam no sistema político sabem que existem. Jornalistas, assessores, funcionários do Executivo, por exemplo, estão cansados de conhecê-las.

Dentro do sistema político, espera-se que elas sejam tão respeitadas quanto as escritas. Por isso, são normas de adesão compulsória, cujo descumprimento implica em sanções, proporcionais à gravidade da falta.

Ou seja, o que estamos chamando regras não escritas não escondem atos ilícitos. Quando um político as segue, ele não acoberta condutas que o sistema considera criminosas. De acordo com suas regras, elas são legítimas.

Quase todas dizem respeito a dinheiro. Por exemplo, sobre como são feitas e financiadas as eleições. Sobre quanto recebem os parlamentares.

Às vezes, não se fala delas para não assustar os cidadãos. Às vezes, para não encorajar hostilidades para com os políticos. Em qualquer caso, faz parte de sua natureza permanecer não ditas. Elas resistem mal à luz do sol.

Lembremos o que aconteceu em 2005, com o mensalão. Lá, algo que era (e continua sendo) uma regra não explícita universal do sistema político, a liberdade para arrecadar recursos e fazer despesas não contabilizadas nas campanhas, se tornou a prática ilícita de alguns indivíduos, depois da revelação escandalosa. Todo mundo que não foi explicitamente denunciado fingiu que nunca tinha feito aquilo, enquanto boa parte da imprensa fingia estar estupefata com as “descobertas”.

Agora, com as passagens aéreas, algo de parecido acontece. Todos sabemos que os vencimentos de deputados e senadores não se limitam ao que recebem nominalmente. Aliás, se fossem, seriam inferiores ao que profissionais com funções muito menos relevantes ganham no Brasil moderno.

Para não afrontar um país onde as pessoas recebem salários baixíssimos, os políticos fingem que ganham pouco, mas criam complementos disfarçados para aumentar seus vencimentos. As passagens são apenas um deles.

A norma não explícita sobre as passagens as considera parte do salário, portanto algo que o parlamentar pode gastar como quiser. Nenhum dos que as usou dessa maneira cometeu um crime ou sequer uma irregularidade. Ninguém pode ser penalizado por seguir uma regra, mesmo se não estiver escrita.

Não se está aqui defendendo o modo como o sistema opera nesse particular. Sua disfuncionalidade é visível, até mesmo pelo desgaste que o episódio provocou. Mas nada se ganha com o moralismo das críticas que ouvimos nos últimos dias.

O primeiro passo para sair do problema é discuti-lo às claras. Que tal parar de fingir?

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