O fim da candidatura de Ciro Gomes à Presidência pelo PSB mostra mais do que uma simples opção da direção do partido socialista pela candidatura da petista Dilma Rousseff. É também a confirmação da hegemonia do PT sobre a esquerda do espectro partidário. Esse fato vai além de um ato de vontade do partido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ou de uma opção das pequenas agremiações de esquerda que orbitam a sua volta. É um dado histórico, contra o qual o simples proselitismo é inócuo. Para ameaçar a posição do PT no quadro partidário, é preciso ação orgânica e transformação efetiva dos partidos que hoje são satélites do PT em organizações de massa. É andar muito chão e comer muita grama.
A hegemonia petista é produto de uma combinação de contingências históricas e decisões políticas. Fundado em 1980 por integrantes do "novo sindicalismo", que jamais pegou em armas, e facções egressas da luta armada contra a ditadura, o partido, mais por contingência do que por decisão dos seus atores políticos, fez da síntese do conflito o seu tecido orgânico. O partido formou-se como uma frente de esquerda - e, tomadas as tentativas anteriores nesse sentido, cujo palco foram os jornais alternativos da década de 1970, o PT seria uma aposta no desastre.
Não foi. Há duas explicações centrais para isso.
Em primeiro lugar, as facções, ao ingressarem no PT, já haviam feito a inflexão da opção pela luta armada - até porque o inimigo central e comum, a ditadura, se encontrava nos estertores e, antes de sucumbir, havia desmantelado as suas organizações. A queda do Muro de Berlim, em 1989, e o declínio do socialismo real, iniciaram um processo de "hegemonização" interna da opção pelo socialismo democrático - a democracia não mais como um instrumento de chegada ao poder e imposição da "ditadura do proletariado", mas como objetivo. Não mais um meio, mas um fim.
Em segundo lugar, porque os sindicalistas que fazia parte da experiência de fundação de um partido de esquerda de massas não se incorporaram como coadjuvantes do processo. Aliás, a experiência de mobilização dos setores tradicionalmente representados pela esquerda do espectro partidário, os trabalhadores do setor industrial em especial, dava protagonismo a esses atores políticos mais forjados na prática do que em grandes debates teóricos.
A dinâmica interna do PT incorporou esses dois setores em igualdade de condições. Essa era a condição para que um líder como Lula não fosse engolido pelo processo, ou que um líder como Lula engolisse os grupos políticos que dependiam da habilidade do metalúrgico para mobilizar grandes massas.
Praticamente toda a primeira década do partido foi marcada por uma dinâmica interna de luta pelo poder que tendeu à radicalização. Isso manteve o partido isolado, o que seria mortal para uma organização política em início de carreira, mas o isolamento teve outro efeito, o de fixar no eleitor a identidade do partido. A estratégia camicaze de lançar candidatos para perder serviu ao seu propósito. E uma identidade forte de um líder carismático ajudou esse processo, num país sem tradição de partidos ideológicos. No final da primeira década, o PT era a opção obrigatória para alianças com os pequenos partidos de esquerda. Uma coesão parlamentar contraditoriamente fundada na divisão interna - a obrigação de defesa das posições da maioria - tornou o partido também o centro do bloco da esquerda parlamentar, para desespero da esquerda tradicional.
A primeira eleição de Lula, em 2002, foi a confirmação de uma liderança sobre os demais partidos de esquerda que já era exercida na prática. A grave crise interna de 2005, decorrente do chamado Mensalão do PT, foi um momento de declínio dessa liderança - por alguns meses, durante o período mais agressivo de CPIs e denúncias, a combinação de organicidade tecida na luta interna e liderança que fazia a conversa ideológica com setores de baixa renda ruiu e teria levado junto a hegemonia do PT, se houvesse algum partido de esquerda com condições de assumir o seu lugar. O PPS, principal adversário do "hegemonismo" petista, aproximou-se tanto do PSDB que tornou impossível a diferenciação entre um e outro. PSB e PCdoB tomaram a decisão tática de alinhamento com o PT contra a ofensiva de setores conservadores, mas não tinham nem lideranças tão grandes quanto Lula, nem massas, para assumirem uma posição privilegiada nessa aliança. O P-SOL se desprendeu do PT e tentou voo solo. O recente racha na minúscula legenda, em torno de uma candidatura presidencial, mostra que ainda está longe de ser um partido.
O PSB cresce no vácuo, como opção à polarização PT/PSDB, e tem se aproveitado disso, nos moldes de um partido de formação tradicional. Ciro Gomes foi o integrante do partido que mais entendeu que isso não bastava. A insistência do deputado de formular um projeto para o Brasil utilizando o partido - foi um trabalho quase solitário, mas articulado com as direções estaduais - é um reconhecimento de que a legenda, para ter vida própria, precisa de alguma organicidade ideológica, além de líderes com potencial inegável, como o próprio Ciro e o presidente do partido, Eduardo Campos. Ciro não prima pela habilidade, é certo, mas conseguiu, por algum tempo, colocar a disputa pela hegemonia do campo de esquerda dentro do foco programático. O parlamentar tentou colocar na agenda o debate sobre o alto preço exigido pelo presidencialismo de coalizão brasileiro e quebrar o falso consenso em torno de uma política monetária que foi descolada do debate político pela adesão aos ditames do neoliberalismo, nos governos FHC, e pelas pressões intensas do mercado financeiro sobre o PT (e sobre ele próprio, que era candidato do PPS) nas eleições de 2002.
Não conseguiu romper o impasse entre afrontar a hegemonia do PT ou garantir ao PSB o apoio do partido hegemônico do bloco de esquerda para crescer como os partidos tradicionais. O PSB fez a segunda opção.
Maria Inês Nassif é repórter especial de Política. Escreve às quintas-feiras
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