DEU NO VALOR ECONÔMICO
Vamos para a fase decisiva da sucessão presidencial sem a presença da personalidade e do discurso que a salvaram, especialmente no final da campanha, da rotina regida pelo marketing eleitoral. Com Marina, de algum modo, o mundo da vida - no seu léxico, uma política para o século XXI com eixo na solidariedade e na cooperação social - encontrou passagem na disputa que se concentrava nos candidatos Dilma e Serra. Ambos indisfarçavelmente vindos da região sistêmica da vida social, estatísticas em punho, prometendo mundos e fundos, e chamando para si a responsabilidade de levar à frente a modernização econômica e social do país, cujos fundamentos, já conhecidos pelas práticas exitosas dos governos anteriores, não deveriam ser objeto de controvérsias. Ao eleitor cabia apenas indicar qual deles seria o mais qualificado a fim de realizar essa tarefa consensual.
A leitura das urnas, contudo, subverteu o cenário do primeiro turno. O voto da periferia, tal como visto na zona Oeste do Rio de Janeiro, em cujos bairros as famílias de baixa renda se constituem em maioria, não demonstrou ser um monopólio do PT, como era de se esperar em razão das políticas assistencialistas do governo. Nessa região, a candidata do PV rondou em torno dos 33% dos votos ("O Globo", 05/10/10, p. 14), fenômeno que se reiterou exemplarmente na cidade de Volta Redonda, outrora cidade símbolo da industrialização do país, em que ela foi a vitoriosa com 40,02% da votação contra 39,53 de Dilma e apenas 18,7 de Serra, e nos surpreendentes resultados de Recife, com seus 36,73% contra os 42,92% de votos para Dilma (Valor, 06/10/10, p. A16), em meio a um oceano de sufrágios da chapa da situação.
A pesquisa dos especialistas no estudo do voto decerto que trará mais luz sobre essa inesperada rebelião do voto popular, que dissentiu da orientação que lhe vinha das estruturas partidárias, das máquinas eleitorais dos governos, inclusive de organizações religiosas influentes, principalmente as de adesão evangélica, como, no caso do Rio de Janeiro, da poderosa Assembleia de Deus. Mas, desde logo, está claro que a religião, para o bem e para o mal, está participando do processo eleitoral, e que a identidade evangélica de Marina contribuiu em não pequena monta para o seu sucesso eleitoral nos setores subalternos da sociedade.
A votação em Marina, porém, claramente transcendeu o voto evangélico, como atesta a consulta do voto de urnas de zonas eleitorais das camadas médias. O tema do meio ambiente, com audiência crescente na sociedade, em particular na juventude, certamente teve um peso considerável, mas a questão que importa reter é que sua votação extravasou do seu nicho temático.
A insistência com que muitos analistas procuram explicar o seu voto pela religião ou pela questão ambiental - há quem fale no voto chique em Marina - deixa de fora a marcação política do seu discurso, sua ênfase nos valores republicanos, e, principalmente, em um debate cujo centro gravitava em torno de papéis a serem conferidos ao Estado, a sua opção em se dirigir à sociedade civil em busca de soluções.
Contudo, mesmo sem a candidatura de Marina, não há reversão possível ao quadro anterior, protagonizado pelas questões sistêmicas, em que o mundo popular era interpelado apenas como consumidor de bens e serviços. O inventário de boas questões trazidas por ela certamente será reapresentado ao eleitor pelos candidatos que seguem na disputa. Mas, sobre a leitura desse primeiro turno, que ora deixamos para trás, paira um risco a ser erradicado pela raiz, qual seja o de franquear o espaço republicano à ação da religião, e, sinal sinistro, a grupos religiosos fundamentalistas.
Quanto a essa decisiva questão não se pode deixar de registrar que, sob o governo Lula, em tratativas com os vértices da Igreja Católica, já foram dados passos de rendição do Estado - laico, por definição constitucional - em matéria de ensino religioso nas escolas públicas, ainda passíveis de extensão a outras designações religiosas.
Tamanha presença da religião no coração da vida republicana que é a escola pública, iniciativa ainda a ser concretizada, só encontra paralelo no regime de Vargas (um positivista sem religião), quando se permitiu, em 1931, que se instalasse no cimo da elevação conhecida como Corcovado, em plena capital federal, a estátua do Cristo Redentor. E, poucos anos mais tarde, até por pressões exercidas pela hierarquia católica, se destruísse a notável experiência, então nos seus inícios, da Universidade do Distrito Federal, projeto liderado pelo grande educador Anisio Teixeira, em razão da sua natureza laica e republicana.
Mais uma convergência - pouco notada, porém sintomática - entre as eras de Vargas e a de Lula. (De passagem, para quem quiser conhecer a posição de contestação dos republicanos liberais históricos ao ensino religioso nas escolas públicas, consultar "A Ilustração Brasileira", de Roque Spencer Maciel de Barros, clássico de 1986).
Mas, se há recuos quanto à natureza laica do Estado, na sociedade civil, em particular no mundo da vida dos setores subalternos, o quadro ainda é mais complexo: a religião, aí, é com freqüência, a principal via de comunicação da população com as agências republicanas. Nesse mundo, nas décadas de meados de 1960 a 1980, a política foi banida pela repressão do regime militar, e, no vazio que restou, infiltraram-se os administradores de clientelas, o narcotráfico e as milícias. E, à falta de república, a religião e seus diversos cultos se instituíram como um dos poucos lugares de ação autônoma nesses territórios onde vige a lei da natureza.
Às instituições republicanas cabe respeitá-los e compreender o seu papel positivo na formação civil do povo, mas sem se render em matéria de princípio, por cálculos eleitorais, a expressões de fundamentalismo religioso, como nessa intempestiva questão sobre o aborto. Esse talvez o metro que nos faltava na sucessão presidencial, a fim de discriminar com nitidez o estadista do mero oportunista com seu Maquiavel mal compreendido.
Vamos para a fase decisiva da sucessão presidencial sem a presença da personalidade e do discurso que a salvaram, especialmente no final da campanha, da rotina regida pelo marketing eleitoral. Com Marina, de algum modo, o mundo da vida - no seu léxico, uma política para o século XXI com eixo na solidariedade e na cooperação social - encontrou passagem na disputa que se concentrava nos candidatos Dilma e Serra. Ambos indisfarçavelmente vindos da região sistêmica da vida social, estatísticas em punho, prometendo mundos e fundos, e chamando para si a responsabilidade de levar à frente a modernização econômica e social do país, cujos fundamentos, já conhecidos pelas práticas exitosas dos governos anteriores, não deveriam ser objeto de controvérsias. Ao eleitor cabia apenas indicar qual deles seria o mais qualificado a fim de realizar essa tarefa consensual.
A leitura das urnas, contudo, subverteu o cenário do primeiro turno. O voto da periferia, tal como visto na zona Oeste do Rio de Janeiro, em cujos bairros as famílias de baixa renda se constituem em maioria, não demonstrou ser um monopólio do PT, como era de se esperar em razão das políticas assistencialistas do governo. Nessa região, a candidata do PV rondou em torno dos 33% dos votos ("O Globo", 05/10/10, p. 14), fenômeno que se reiterou exemplarmente na cidade de Volta Redonda, outrora cidade símbolo da industrialização do país, em que ela foi a vitoriosa com 40,02% da votação contra 39,53 de Dilma e apenas 18,7 de Serra, e nos surpreendentes resultados de Recife, com seus 36,73% contra os 42,92% de votos para Dilma (Valor, 06/10/10, p. A16), em meio a um oceano de sufrágios da chapa da situação.
A pesquisa dos especialistas no estudo do voto decerto que trará mais luz sobre essa inesperada rebelião do voto popular, que dissentiu da orientação que lhe vinha das estruturas partidárias, das máquinas eleitorais dos governos, inclusive de organizações religiosas influentes, principalmente as de adesão evangélica, como, no caso do Rio de Janeiro, da poderosa Assembleia de Deus. Mas, desde logo, está claro que a religião, para o bem e para o mal, está participando do processo eleitoral, e que a identidade evangélica de Marina contribuiu em não pequena monta para o seu sucesso eleitoral nos setores subalternos da sociedade.
A votação em Marina, porém, claramente transcendeu o voto evangélico, como atesta a consulta do voto de urnas de zonas eleitorais das camadas médias. O tema do meio ambiente, com audiência crescente na sociedade, em particular na juventude, certamente teve um peso considerável, mas a questão que importa reter é que sua votação extravasou do seu nicho temático.
A insistência com que muitos analistas procuram explicar o seu voto pela religião ou pela questão ambiental - há quem fale no voto chique em Marina - deixa de fora a marcação política do seu discurso, sua ênfase nos valores republicanos, e, principalmente, em um debate cujo centro gravitava em torno de papéis a serem conferidos ao Estado, a sua opção em se dirigir à sociedade civil em busca de soluções.
Contudo, mesmo sem a candidatura de Marina, não há reversão possível ao quadro anterior, protagonizado pelas questões sistêmicas, em que o mundo popular era interpelado apenas como consumidor de bens e serviços. O inventário de boas questões trazidas por ela certamente será reapresentado ao eleitor pelos candidatos que seguem na disputa. Mas, sobre a leitura desse primeiro turno, que ora deixamos para trás, paira um risco a ser erradicado pela raiz, qual seja o de franquear o espaço republicano à ação da religião, e, sinal sinistro, a grupos religiosos fundamentalistas.
Quanto a essa decisiva questão não se pode deixar de registrar que, sob o governo Lula, em tratativas com os vértices da Igreja Católica, já foram dados passos de rendição do Estado - laico, por definição constitucional - em matéria de ensino religioso nas escolas públicas, ainda passíveis de extensão a outras designações religiosas.
Tamanha presença da religião no coração da vida republicana que é a escola pública, iniciativa ainda a ser concretizada, só encontra paralelo no regime de Vargas (um positivista sem religião), quando se permitiu, em 1931, que se instalasse no cimo da elevação conhecida como Corcovado, em plena capital federal, a estátua do Cristo Redentor. E, poucos anos mais tarde, até por pressões exercidas pela hierarquia católica, se destruísse a notável experiência, então nos seus inícios, da Universidade do Distrito Federal, projeto liderado pelo grande educador Anisio Teixeira, em razão da sua natureza laica e republicana.
Mais uma convergência - pouco notada, porém sintomática - entre as eras de Vargas e a de Lula. (De passagem, para quem quiser conhecer a posição de contestação dos republicanos liberais históricos ao ensino religioso nas escolas públicas, consultar "A Ilustração Brasileira", de Roque Spencer Maciel de Barros, clássico de 1986).
Mas, se há recuos quanto à natureza laica do Estado, na sociedade civil, em particular no mundo da vida dos setores subalternos, o quadro ainda é mais complexo: a religião, aí, é com freqüência, a principal via de comunicação da população com as agências republicanas. Nesse mundo, nas décadas de meados de 1960 a 1980, a política foi banida pela repressão do regime militar, e, no vazio que restou, infiltraram-se os administradores de clientelas, o narcotráfico e as milícias. E, à falta de república, a religião e seus diversos cultos se instituíram como um dos poucos lugares de ação autônoma nesses territórios onde vige a lei da natureza.
Às instituições republicanas cabe respeitá-los e compreender o seu papel positivo na formação civil do povo, mas sem se render em matéria de princípio, por cálculos eleitorais, a expressões de fundamentalismo religioso, como nessa intempestiva questão sobre o aborto. Esse talvez o metro que nos faltava na sucessão presidencial, a fim de discriminar com nitidez o estadista do mero oportunista com seu Maquiavel mal compreendido.
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional. Escreve às segundas-feiras
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