DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Independentemente do resultado final das eleições, cabe destacar dois fatos da maior importância: a existência do segundo turno e a reconfiguração da relação entre política e valores encarnada na expressiva votação de Marina Silva.
Lula e o PT foram vítimas da soberba. Acreditaram, com orgulho desmedido, que poderiam vencer as eleições em primeiro turno por mero ato de uma vontade que não precisava reconhecer limites éticos nem mesmo institucionais. O presidente, em particular nas últimas semanas, lançou-se desenfreadamente numa tentativa de eleger a sua escolhida, com total menosprezo a qualquer valor. Só contava o seu poder. Assim, tivemos expressões do tipo "sou a opinião pública", num contexto de ataque à liberdade de imprensa e aos meios de comunicação. Foi o momento subsequente às quebras do sigilo fiscal na Receita Federal de personalidades tucanas e de familiares do candidato José Serra em meio às denúncias de tráfico de influência da ex-ministra Erenice Guerra e familiares. Este último episódio tinha - como se mostrou posteriormente - um potencial explosivo por envolver uma pessoa sem personalidade própria, sendo uma mera criatura de Dilma Rousseff.
Esses dois episódios expõem uma falta de adesão a valores do atual governo, no primeiro mostrando completo desprezo pelos direitos individuais mediante a invasão da privacidade de cidadãos, o segundo exibindo o total descaso com a moralidade pública. São episódios que apresentam uma forma crua de fazer política, como se só contasse a conquista do poder, não entrando em pauta nenhuma consideração de ordem ética. O que fez o presidente? Partiu para matar o mensageiro, ou seja, os órgãos de comunicação e de imprensa que revelaram o escândalo. A inversão foi total. O problema não residia na invasão da privacidade e na falta de moralidade pública, mas nas ações que o revelaram!
Marina foi a única entre os três candidatos que soube recolocar a questão nos seus verdadeiros termos. Enquanto seus adversários se contentavam em mostrar obras, disputando pela competência gerencial, a candidata verde adotou outra via, a de mostrar que política se faz com princípios e valores. Não pretendo entrar no mérito de quais são esses princípios e valores, que podem ser, evidentemente, objeto de disputa, mas mostrar o seu comprometimento com valores, quaisquer que sejam eles. Ou seja, ela colocou o dedo na ferida: política não é apenas administração de obras, mas comprometimento com valores, com discursos de esperança eticamente válidos.
Sua atuação se fez em torno de três grandes eixos valorativos: 1) a moralidade pública; 2) os valores morais, religiosos; e c) a defesa da natureza. Seu conceito-chave foi "conservação". Conservação da moralidade pública, conservação da vida e conservação da natureza. Sob essa ótica, pode-se dizer que ela é uma "conservadora", para além das contraposições entre "direita" e "esquerda", quaisquer que sejam os seus significados.
A moralidade pública foi claramente pisoteada nestes oito anos de governo Lula, permeado por uma série de escândalos, todos caracterizados pela impunidade. Até palavras carinhosas foram utilizadas para acobertar ações criminosas, como nomear os seus autores de "aloprados". Os "companheiros" envolvidos foram preservados, numa lei do silêncio que foi a regra, mostrando cumplicidade e conivência. A disparidade ético-política foi total, pois o governo petista se colocou em clara contradição com a bandeira-mor do PT oposicionista, a ética na política. O Erenicegate recolocou na ordem do dia a moralidade pública em função de todo esse histórico, atualizado numa pessoa de confiança de Dilma. Num dos debates, Marina enfrentou publicamente esse problema, enquanto Serra sobre ele fez silêncio na ocasião.
A questão do aborto, que tanto mobilizou os setores mais conservadores da Igreja Católica e das igrejas evangélicas, exibiu também o seu comprometimento com valores morais. Não podemos esquecer que a opinião pública não se faz somente pela televisão, pelo rádio, por jornais e revistas, mas também pelo que é transmitido dentro dos recintos e espaços religiosos, por padres e pastores. Numa vida pública que expõe a falta de valores e o pouco apreço pela vida privada e pela família, a candidata verde soube galvanizar em torno de si valores morais e religiosos. Pode-se discordar deles, porém não pôr em questão a sua autenticidade.
O PT, por sua vez, foi de uma superficialidade completa a esse respeito, pois em seu PNDH-3 defendeu claramente o aborto, como se fosse uma questão já resolvida, que careceria apenas de encaminhamento legislativo. Dilma foi na mesma linha, embora tenha, no último momento, recuado diante do prejuízo eleitoral. A questão dela foi eleitoral, e não moral, religiosa, o que Marina soube capitalizar.
Discorde-se ou não das posições de Marina Silva quanto ao que entende por defesa da natureza, forçoso é reconhecer que ela soube erguer essa bandeira e sustentá-la publicamente. Embora sua atuação ministerial se tenha pautado por tentativas de inviabilizar a pesquisa de transgênicos na CTNbio e de dificultar ao extremo a construção de hidrelétricas, num país ávido por valores e princípios, ela soube se forjar uma figura política, ética. Defensora da conservação de florestas, em particular da Amazônia, ela introduziu um lema que permeou a opinião pública urbana. Apresentou uma adesão a princípios que contrastou fortemente com seus opositores.
Sua agenda política destoou das demais, preenchendo um vácuo da vida pública nacional, em que os valores morais pareciam ter desertado por conveniências eleitorais. Recuperou uma dimensão recentemente esquecida da política entre nós.
Eis por que também dificilmente assumirá compromissos eleitorais com Serra ou Dilma, pois esse tipo de capital não pode ser transferido.
Independentemente do resultado final das eleições, cabe destacar dois fatos da maior importância: a existência do segundo turno e a reconfiguração da relação entre política e valores encarnada na expressiva votação de Marina Silva.
Lula e o PT foram vítimas da soberba. Acreditaram, com orgulho desmedido, que poderiam vencer as eleições em primeiro turno por mero ato de uma vontade que não precisava reconhecer limites éticos nem mesmo institucionais. O presidente, em particular nas últimas semanas, lançou-se desenfreadamente numa tentativa de eleger a sua escolhida, com total menosprezo a qualquer valor. Só contava o seu poder. Assim, tivemos expressões do tipo "sou a opinião pública", num contexto de ataque à liberdade de imprensa e aos meios de comunicação. Foi o momento subsequente às quebras do sigilo fiscal na Receita Federal de personalidades tucanas e de familiares do candidato José Serra em meio às denúncias de tráfico de influência da ex-ministra Erenice Guerra e familiares. Este último episódio tinha - como se mostrou posteriormente - um potencial explosivo por envolver uma pessoa sem personalidade própria, sendo uma mera criatura de Dilma Rousseff.
Esses dois episódios expõem uma falta de adesão a valores do atual governo, no primeiro mostrando completo desprezo pelos direitos individuais mediante a invasão da privacidade de cidadãos, o segundo exibindo o total descaso com a moralidade pública. São episódios que apresentam uma forma crua de fazer política, como se só contasse a conquista do poder, não entrando em pauta nenhuma consideração de ordem ética. O que fez o presidente? Partiu para matar o mensageiro, ou seja, os órgãos de comunicação e de imprensa que revelaram o escândalo. A inversão foi total. O problema não residia na invasão da privacidade e na falta de moralidade pública, mas nas ações que o revelaram!
Marina foi a única entre os três candidatos que soube recolocar a questão nos seus verdadeiros termos. Enquanto seus adversários se contentavam em mostrar obras, disputando pela competência gerencial, a candidata verde adotou outra via, a de mostrar que política se faz com princípios e valores. Não pretendo entrar no mérito de quais são esses princípios e valores, que podem ser, evidentemente, objeto de disputa, mas mostrar o seu comprometimento com valores, quaisquer que sejam eles. Ou seja, ela colocou o dedo na ferida: política não é apenas administração de obras, mas comprometimento com valores, com discursos de esperança eticamente válidos.
Sua atuação se fez em torno de três grandes eixos valorativos: 1) a moralidade pública; 2) os valores morais, religiosos; e c) a defesa da natureza. Seu conceito-chave foi "conservação". Conservação da moralidade pública, conservação da vida e conservação da natureza. Sob essa ótica, pode-se dizer que ela é uma "conservadora", para além das contraposições entre "direita" e "esquerda", quaisquer que sejam os seus significados.
A moralidade pública foi claramente pisoteada nestes oito anos de governo Lula, permeado por uma série de escândalos, todos caracterizados pela impunidade. Até palavras carinhosas foram utilizadas para acobertar ações criminosas, como nomear os seus autores de "aloprados". Os "companheiros" envolvidos foram preservados, numa lei do silêncio que foi a regra, mostrando cumplicidade e conivência. A disparidade ético-política foi total, pois o governo petista se colocou em clara contradição com a bandeira-mor do PT oposicionista, a ética na política. O Erenicegate recolocou na ordem do dia a moralidade pública em função de todo esse histórico, atualizado numa pessoa de confiança de Dilma. Num dos debates, Marina enfrentou publicamente esse problema, enquanto Serra sobre ele fez silêncio na ocasião.
A questão do aborto, que tanto mobilizou os setores mais conservadores da Igreja Católica e das igrejas evangélicas, exibiu também o seu comprometimento com valores morais. Não podemos esquecer que a opinião pública não se faz somente pela televisão, pelo rádio, por jornais e revistas, mas também pelo que é transmitido dentro dos recintos e espaços religiosos, por padres e pastores. Numa vida pública que expõe a falta de valores e o pouco apreço pela vida privada e pela família, a candidata verde soube galvanizar em torno de si valores morais e religiosos. Pode-se discordar deles, porém não pôr em questão a sua autenticidade.
O PT, por sua vez, foi de uma superficialidade completa a esse respeito, pois em seu PNDH-3 defendeu claramente o aborto, como se fosse uma questão já resolvida, que careceria apenas de encaminhamento legislativo. Dilma foi na mesma linha, embora tenha, no último momento, recuado diante do prejuízo eleitoral. A questão dela foi eleitoral, e não moral, religiosa, o que Marina soube capitalizar.
Discorde-se ou não das posições de Marina Silva quanto ao que entende por defesa da natureza, forçoso é reconhecer que ela soube erguer essa bandeira e sustentá-la publicamente. Embora sua atuação ministerial se tenha pautado por tentativas de inviabilizar a pesquisa de transgênicos na CTNbio e de dificultar ao extremo a construção de hidrelétricas, num país ávido por valores e princípios, ela soube se forjar uma figura política, ética. Defensora da conservação de florestas, em particular da Amazônia, ela introduziu um lema que permeou a opinião pública urbana. Apresentou uma adesão a princípios que contrastou fortemente com seus opositores.
Sua agenda política destoou das demais, preenchendo um vácuo da vida pública nacional, em que os valores morais pareciam ter desertado por conveniências eleitorais. Recuperou uma dimensão recentemente esquecida da política entre nós.
Eis por que também dificilmente assumirá compromissos eleitorais com Serra ou Dilma, pois esse tipo de capital não pode ser transferido.
Professor de filosofia na UFRGS.
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