DEU NO VALOR ECONÔMICO
Os debates sucessórios não mencionaram sequer a crise mundial. Antes da posse da nova presidente, a crise mundial se impõe na mídia brasileira. A virulenta manifestação de crise mundial em 2008, a partir da implosão da bolha financeiro-imobiliária nos EUA se propagou urbi et orbi e está solidamente instalada.
Economia é história, no sentido de transformação. A dimensão monetário-financeira da crise mundial é fruto do padrão-dólar instalado em 1971, quando foi decidido, por aquela nação, o cancelamento da cláusula ouro. Um dólar, baseado em confiança, passou a valer... um dólar! Objeto de desejo universal pois, ao dominar as transações de comércio internacional, passou a ser o item principal das reservas externas de toda e qualquer moeda nacional. Isso é mais importante para a geopolítica americana do que a bomba atômica. Representa a hegemonia de uma nação que emite (e é solicitada a emitir) dívida disputada por todas as outras nações. O Produto Interno Bruto (PIB) americano é um quarto do mundial, porém sua dívida desejada é lastro mundial. As emissões sucessivas de títulos do Tesouro americano confirmaram a inexistência de um ativo monetário de risco.
Quando explodiu a bolha, em 2008, quebraram bancos e houve a desvalorização substancial do patrimônio das famílias americanas, endividadas com lastro hipotecário de suas residências e imóveis de negócios. Apesar do imenso socorro do Federal Reserve (o Fed, banco central americano), os bancos americanos sobreviventes têm nos seus ativos mais de US$ 1 trilhão em papéis duvidosos.
Isso produziu duas mudanças de comportamento: as famílias americanas querem poupar e restringir o consumo, e os bancos não querem emprestar às famílias e aos pequenos e médios negócios. Dada a prevalência do dólar no monumental movimento cambial internacional, os bancos americanos estão se deslocando para ganhos em operações cambiais. A conduta poupadora das famílias americanas é o fundamento de uma crise de demanda mundial. Na zona do euro, os baixos juros, inspirados na Alemanha, levaram os bancos europeus a facilitar o crédito em euros em todas as dimensões.
Porém, a dívida soberana denominada em euros das nações europeias enfrenta também dois problemas: o Banco Central Europeu (BCE) não é o Fed e não absorve esses papéis. Com a crise de demanda, as economias europeias foram afetadas e os elos nacionais mais fracos começam a quebrar (Grécia, Irlanda, Portugal e outros), o que reduz a confiabilidade nos bancos europeus. Toda a zona do euro está em crise.
A economia japonesa está soldada à chinesa (mais de 50% do comércio exterior japonês é com a China). A China está monetariamente soldada aos EUA - tem a maior parcela de títulos do Tesouro americano. As filiais americanas atuantes na China (mais de 3 mil) completam o elo do G-2.
Os US$ 600 bilhões do presidente Obama, bem intencionado em reativar a economia, irão alimentar um processo monetário internacional doente e cada vez mais consciente dos riscos dos ativos em dólar, porém sem saber o que colocar no lugar.
A crise de demanda mundial irá atingir o Brasil. Nós não fazemos o controle dos investimentos estrangeiros no Brasil. Foi nossa política atrair capital cigano com a oferta de juros elevados; acumulamos grandes reservas de dólares e não fizemos investimento público na escala necessária para elevar a pífia taxa de 18% de investimento em relação ao PIB. Estimulamos o rentismo empresarial e um endividamento familiar maciço.
O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) tem o mérito de repor em discussão a questão do investimento em infraestrutura como chave para a sustentação da economia. Porém é quantitativamente insuficiente e tem tido uma implantação administrativamente difícil e financeiramente curta. No momento, informa a imprensa, os restos a pagar superam em muito os investimentos do PAC em 2010. Somente 22% do autorizado a ser dispendido em projetos em 2010 foram gastos. Dos R$ 32 bilhões autorizados para o corrente ano, dos restos a pagar de 2009 (R$ 26 bilhões), foram pagos 11,6%. Entretanto, ainda faltam ser pagos cerca de R$ 14 bilhões de gastos do PAC em 2009.
É fácil compreender porque a presidente eleita já sinalizou a reinstalação da CPMF. Além do mais, é visível que a inflação tem crescido, apesar da política paralisante de juros altos: entre 1995 e 2008, a inflação no Brasil superou a média mundial.
O retorno dos grandes bancos sobre o patrimônio líquido está na faixa de 25% ao ano. Esse desempenho bancário não é pró-crescimento de emprego e renda, o que condena, a longo prazo, a política de endividamento familiar. Uma elevação robusta do salário mínimo real ajudaria a sobrevida da bolha brasileira, porém o atual governo vê com preocupação fiscal a elevação salarial implícita no debate sucessório.
O Brasil tem que adotar controles de entrada de capital estrangeiro especulativo. E tem que estimular o investimento privado por uma ampliação significativa do investimento em infraestrutura. É necessário colocar um freio em um endividamento familiar perigoso, que deveria ficar circunscrito à compra da casa própria e de matérias para a construção em mutirão.
A nova presidente tem que ter coragem de alterar a receita dos anos Lula. Façamos votos para que as emanações da crise mundial não tornem a vida da nova presidente e a dos brasileiros um inferno.
Carlos Francisco Theodoro Lessa é professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ. Foi presidente do BNDES.
Os debates sucessórios não mencionaram sequer a crise mundial. Antes da posse da nova presidente, a crise mundial se impõe na mídia brasileira. A virulenta manifestação de crise mundial em 2008, a partir da implosão da bolha financeiro-imobiliária nos EUA se propagou urbi et orbi e está solidamente instalada.
Economia é história, no sentido de transformação. A dimensão monetário-financeira da crise mundial é fruto do padrão-dólar instalado em 1971, quando foi decidido, por aquela nação, o cancelamento da cláusula ouro. Um dólar, baseado em confiança, passou a valer... um dólar! Objeto de desejo universal pois, ao dominar as transações de comércio internacional, passou a ser o item principal das reservas externas de toda e qualquer moeda nacional. Isso é mais importante para a geopolítica americana do que a bomba atômica. Representa a hegemonia de uma nação que emite (e é solicitada a emitir) dívida disputada por todas as outras nações. O Produto Interno Bruto (PIB) americano é um quarto do mundial, porém sua dívida desejada é lastro mundial. As emissões sucessivas de títulos do Tesouro americano confirmaram a inexistência de um ativo monetário de risco.
Quando explodiu a bolha, em 2008, quebraram bancos e houve a desvalorização substancial do patrimônio das famílias americanas, endividadas com lastro hipotecário de suas residências e imóveis de negócios. Apesar do imenso socorro do Federal Reserve (o Fed, banco central americano), os bancos americanos sobreviventes têm nos seus ativos mais de US$ 1 trilhão em papéis duvidosos.
Isso produziu duas mudanças de comportamento: as famílias americanas querem poupar e restringir o consumo, e os bancos não querem emprestar às famílias e aos pequenos e médios negócios. Dada a prevalência do dólar no monumental movimento cambial internacional, os bancos americanos estão se deslocando para ganhos em operações cambiais. A conduta poupadora das famílias americanas é o fundamento de uma crise de demanda mundial. Na zona do euro, os baixos juros, inspirados na Alemanha, levaram os bancos europeus a facilitar o crédito em euros em todas as dimensões.
Porém, a dívida soberana denominada em euros das nações europeias enfrenta também dois problemas: o Banco Central Europeu (BCE) não é o Fed e não absorve esses papéis. Com a crise de demanda, as economias europeias foram afetadas e os elos nacionais mais fracos começam a quebrar (Grécia, Irlanda, Portugal e outros), o que reduz a confiabilidade nos bancos europeus. Toda a zona do euro está em crise.
A economia japonesa está soldada à chinesa (mais de 50% do comércio exterior japonês é com a China). A China está monetariamente soldada aos EUA - tem a maior parcela de títulos do Tesouro americano. As filiais americanas atuantes na China (mais de 3 mil) completam o elo do G-2.
Os US$ 600 bilhões do presidente Obama, bem intencionado em reativar a economia, irão alimentar um processo monetário internacional doente e cada vez mais consciente dos riscos dos ativos em dólar, porém sem saber o que colocar no lugar.
A crise de demanda mundial irá atingir o Brasil. Nós não fazemos o controle dos investimentos estrangeiros no Brasil. Foi nossa política atrair capital cigano com a oferta de juros elevados; acumulamos grandes reservas de dólares e não fizemos investimento público na escala necessária para elevar a pífia taxa de 18% de investimento em relação ao PIB. Estimulamos o rentismo empresarial e um endividamento familiar maciço.
O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) tem o mérito de repor em discussão a questão do investimento em infraestrutura como chave para a sustentação da economia. Porém é quantitativamente insuficiente e tem tido uma implantação administrativamente difícil e financeiramente curta. No momento, informa a imprensa, os restos a pagar superam em muito os investimentos do PAC em 2010. Somente 22% do autorizado a ser dispendido em projetos em 2010 foram gastos. Dos R$ 32 bilhões autorizados para o corrente ano, dos restos a pagar de 2009 (R$ 26 bilhões), foram pagos 11,6%. Entretanto, ainda faltam ser pagos cerca de R$ 14 bilhões de gastos do PAC em 2009.
É fácil compreender porque a presidente eleita já sinalizou a reinstalação da CPMF. Além do mais, é visível que a inflação tem crescido, apesar da política paralisante de juros altos: entre 1995 e 2008, a inflação no Brasil superou a média mundial.
O retorno dos grandes bancos sobre o patrimônio líquido está na faixa de 25% ao ano. Esse desempenho bancário não é pró-crescimento de emprego e renda, o que condena, a longo prazo, a política de endividamento familiar. Uma elevação robusta do salário mínimo real ajudaria a sobrevida da bolha brasileira, porém o atual governo vê com preocupação fiscal a elevação salarial implícita no debate sucessório.
O Brasil tem que adotar controles de entrada de capital estrangeiro especulativo. E tem que estimular o investimento privado por uma ampliação significativa do investimento em infraestrutura. É necessário colocar um freio em um endividamento familiar perigoso, que deveria ficar circunscrito à compra da casa própria e de matérias para a construção em mutirão.
A nova presidente tem que ter coragem de alterar a receita dos anos Lula. Façamos votos para que as emanações da crise mundial não tornem a vida da nova presidente e a dos brasileiros um inferno.
Carlos Francisco Theodoro Lessa é professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ. Foi presidente do BNDES.
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