DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Se eu pudesse tirar uma reforma política da cartola, trocaria o nosso sistema eleitoral proporcional por um sistema distrital majoritário, com um deputado por distrito. Se isso não for possível, minha segunda opção é manter o sistema proporcional, mas subdividindo os Estados em distritos eleitorais com quatro, cinco ou seis deputados cada um. Hoje o Estado inteiro é um distritão que elege um mínimo de oito e um máximo de 70 deputados.
Nos países que adotam o voto distrital, o eleitor pode não morrer de amores pela instituição do Parlamento. Assisti nos Estados Unidos a um filme de ficção científica, Independence Day. Quando um disco voador desintegrou o Capitólio, a plateia aplaudiu. Mas o eleitor americano em geral conhece e confia no deputado do seu distrito. A taxa de reeleição dos deputados lá é de 90% ou mais.
Uma plateia brasileira também gostaria de ver o prédio do Congresso Nacional virar fumaça. E o eleitor brasileiro, ao contrário do americano, dificilmente sentiria falta de algum deputado. A maioria nem sequer tem um deputado que possa chamar de seu. Em 2010, os 70 deputados federais eleitos por São Paulo somaram menos de 12 milhões de votos, de um total de 21 milhões de votos válidos e 30 milhões de eleitores. Pouco mais de um terço dos eleitores efetivamente elegeu um deputado. Os demais não votaram, anularam o voto ou votaram num candidato que não se elegeu. Como confiar em quem você não escolheu nem sabe quem é?
A recíproca é verdadeira: como um deputado pode representar bem as dezenas de milhares de eleitores desconhecidos, em grande parte espalhados pelo Estado? Não é por preguiça que os deputados voam de Brasília na quinta-feira à tarde e só reaparecem na terça-feira. Os outros quatro dias da semana eles passam correndo atrás desses eleitores evanescentes no seu Estado. Correria inútil, em larga medida. A taxa de reeleição dos deputados brasileiros gira em torno dos 50% - uma tremenda rotatividade que não se traduz em renovação nem melhora de qualidade da representação.
O sistema distrital também tem defeitos, mas tem esta grande virtude: dá uma âncora geográfica para a representação eleitoral e assim aproxima representantes e representados.
De quebra, ele resolveria outro grande problema: como nosso sistema proporcional é de "lista aberta", ou seja, é a votação individual que determina a ordem em que os candidatos ocuparão as vagas ganhas pelo partido, a eleição vira uma competição de vida ou morte entre candidatos do mesmo partido. Isso tende a encarecer cada vez mais as campanhas e a enfraquecer a fidelidade partidária, o que, por sua vez, obriga os governos a (re)negociar com deputado por deputado para terem maioria. E o eleitor, principalmente nos Estados maiores, fica como cego em tiroteio entre centenas de candidatos de uma dúzia de partidos.
Acontece que o sistema proporcional funciona continuamente no Brasil desde 1934. Bem ou mal, enraizou-se nas instituições e nos hábitos dos políticos e eleitores. Muitos deputados receiam, com ou sem razão, que trocá-lo por algo muito diferente dificulte ainda mais sua reeleição. Desconfio que poucos param realmente para pensar no assunto. Para complicar, o princípio do voto proporcional está na Constituição. Mudá-lo dependeria de uma emenda aprovada por três quintos dos deputados federais e senadores.
Uma mudança mais profunda do sistema eleitoral pode sair no tranco de uma crise política aguda, que não se deve esperar nem desejar. Sendo assim, é melhor pensar em alternativas de reforma que representem, como aquela velha cartilha de alfabetização, um "caminho suave", gradual e sem ruptura.
Minha segunda opção atende a esse requisito. Primeiro, porque contorna a barreira do quórum qualificado para aprovação de emenda constitucional. Subdividir os Estados em distritos com quatro a seis deputados, mantendo o princípio proporcional, pode ser feito por projeto de lei ordinária, aprovado por maioria simples.
Segundo, ela não afronta hábitos cristalizados dos políticos e eleitores. Nesta legislatura, o Senado aprovou e a Câmara quase referendou um projeto de voto proporcional em lista fechada, em que a colocação dos candidatos na lista seria predefinida pelo partido, e não pelo eleitor. Duvido que essa mudança fosse bem aceita pelos eleitores, acostumados a votar em pessoas, mais do que em partidos. Ainda haveria o risco de institucionalizar o "efeito Tiririca". Um, dois ou três puxadores de votos elegeriam a si mesmos e alguns ilustres desconhecidos estrategicamente colocados perto do topo da lista. Prato cheio para corrupção e/ou manipulação pelas direções partidárias. Não parece uma boa opção para aumentar a confiança nas instituições.
Menos impactante do que o voto distrital, a alternativa do voto proporcional em distritos com um número limitado de deputados faria diferença, ainda assim, para encurtar a distância e ancorar a confiança entre representantes e representados.
Para o eleitor, parece muito mais fácil conhecer os quatro, cinco ou seis deputados de seu distrito do que identificar algum entre os 70 deputados de São Paulo, 53 de Minas Gerais, 46 do Rio de Janeiro, e por aí vai.
Para o candidato, concorrer num distrito com outros três, quatro ou cinco do mesmo partido poderá não ser tão fácil, mas com certeza será muito mais barato do que se acotovelar com dezenas de candidatos atrás de voto por todo o Estado.
Claro que isso não é uma panaceia para todos os males da nossa política. Mas seria um primeiro passo importante no caminho da reforma. Passo que pode levar a outros, se não tropeçarmos na tentativa de fazer todas as mudanças de uma vez só.
Torço para que o começo da próxima legislatura dê mais uma chance a essa discussão.
Se eu pudesse tirar uma reforma política da cartola, trocaria o nosso sistema eleitoral proporcional por um sistema distrital majoritário, com um deputado por distrito. Se isso não for possível, minha segunda opção é manter o sistema proporcional, mas subdividindo os Estados em distritos eleitorais com quatro, cinco ou seis deputados cada um. Hoje o Estado inteiro é um distritão que elege um mínimo de oito e um máximo de 70 deputados.
Nos países que adotam o voto distrital, o eleitor pode não morrer de amores pela instituição do Parlamento. Assisti nos Estados Unidos a um filme de ficção científica, Independence Day. Quando um disco voador desintegrou o Capitólio, a plateia aplaudiu. Mas o eleitor americano em geral conhece e confia no deputado do seu distrito. A taxa de reeleição dos deputados lá é de 90% ou mais.
Uma plateia brasileira também gostaria de ver o prédio do Congresso Nacional virar fumaça. E o eleitor brasileiro, ao contrário do americano, dificilmente sentiria falta de algum deputado. A maioria nem sequer tem um deputado que possa chamar de seu. Em 2010, os 70 deputados federais eleitos por São Paulo somaram menos de 12 milhões de votos, de um total de 21 milhões de votos válidos e 30 milhões de eleitores. Pouco mais de um terço dos eleitores efetivamente elegeu um deputado. Os demais não votaram, anularam o voto ou votaram num candidato que não se elegeu. Como confiar em quem você não escolheu nem sabe quem é?
A recíproca é verdadeira: como um deputado pode representar bem as dezenas de milhares de eleitores desconhecidos, em grande parte espalhados pelo Estado? Não é por preguiça que os deputados voam de Brasília na quinta-feira à tarde e só reaparecem na terça-feira. Os outros quatro dias da semana eles passam correndo atrás desses eleitores evanescentes no seu Estado. Correria inútil, em larga medida. A taxa de reeleição dos deputados brasileiros gira em torno dos 50% - uma tremenda rotatividade que não se traduz em renovação nem melhora de qualidade da representação.
O sistema distrital também tem defeitos, mas tem esta grande virtude: dá uma âncora geográfica para a representação eleitoral e assim aproxima representantes e representados.
De quebra, ele resolveria outro grande problema: como nosso sistema proporcional é de "lista aberta", ou seja, é a votação individual que determina a ordem em que os candidatos ocuparão as vagas ganhas pelo partido, a eleição vira uma competição de vida ou morte entre candidatos do mesmo partido. Isso tende a encarecer cada vez mais as campanhas e a enfraquecer a fidelidade partidária, o que, por sua vez, obriga os governos a (re)negociar com deputado por deputado para terem maioria. E o eleitor, principalmente nos Estados maiores, fica como cego em tiroteio entre centenas de candidatos de uma dúzia de partidos.
Acontece que o sistema proporcional funciona continuamente no Brasil desde 1934. Bem ou mal, enraizou-se nas instituições e nos hábitos dos políticos e eleitores. Muitos deputados receiam, com ou sem razão, que trocá-lo por algo muito diferente dificulte ainda mais sua reeleição. Desconfio que poucos param realmente para pensar no assunto. Para complicar, o princípio do voto proporcional está na Constituição. Mudá-lo dependeria de uma emenda aprovada por três quintos dos deputados federais e senadores.
Uma mudança mais profunda do sistema eleitoral pode sair no tranco de uma crise política aguda, que não se deve esperar nem desejar. Sendo assim, é melhor pensar em alternativas de reforma que representem, como aquela velha cartilha de alfabetização, um "caminho suave", gradual e sem ruptura.
Minha segunda opção atende a esse requisito. Primeiro, porque contorna a barreira do quórum qualificado para aprovação de emenda constitucional. Subdividir os Estados em distritos com quatro a seis deputados, mantendo o princípio proporcional, pode ser feito por projeto de lei ordinária, aprovado por maioria simples.
Segundo, ela não afronta hábitos cristalizados dos políticos e eleitores. Nesta legislatura, o Senado aprovou e a Câmara quase referendou um projeto de voto proporcional em lista fechada, em que a colocação dos candidatos na lista seria predefinida pelo partido, e não pelo eleitor. Duvido que essa mudança fosse bem aceita pelos eleitores, acostumados a votar em pessoas, mais do que em partidos. Ainda haveria o risco de institucionalizar o "efeito Tiririca". Um, dois ou três puxadores de votos elegeriam a si mesmos e alguns ilustres desconhecidos estrategicamente colocados perto do topo da lista. Prato cheio para corrupção e/ou manipulação pelas direções partidárias. Não parece uma boa opção para aumentar a confiança nas instituições.
Menos impactante do que o voto distrital, a alternativa do voto proporcional em distritos com um número limitado de deputados faria diferença, ainda assim, para encurtar a distância e ancorar a confiança entre representantes e representados.
Para o eleitor, parece muito mais fácil conhecer os quatro, cinco ou seis deputados de seu distrito do que identificar algum entre os 70 deputados de São Paulo, 53 de Minas Gerais, 46 do Rio de Janeiro, e por aí vai.
Para o candidato, concorrer num distrito com outros três, quatro ou cinco do mesmo partido poderá não ser tão fácil, mas com certeza será muito mais barato do que se acotovelar com dezenas de candidatos atrás de voto por todo o Estado.
Claro que isso não é uma panaceia para todos os males da nossa política. Mas seria um primeiro passo importante no caminho da reforma. Passo que pode levar a outros, se não tropeçarmos na tentativa de fazer todas as mudanças de uma vez só.
Torço para que o começo da próxima legislatura dê mais uma chance a essa discussão.
Cientista político, foi Secretário-Geral da presidência da república (governo FHC)
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