DEU NO VALOR ECONÔMICO
Há consenso entre os analistas de que, nessa disputa pela sucessão presidencial, a linguagem dominante foi a do marketing, e não a da política. Com efeito, durante os longos meses da campanha no horário eleitoral, a agenda que os candidatos seguiam - saúde, educação, segurança - procedia das pesquisas quantitativas e qualitativas elaboradas por especialistas dessa técnica de comunicação, embora não se lhes possa negar o desempenho eficiente ao expor seus antigos feitos nesses quesitos e na apresentação dos que prometiam para o futuro.
Democracia, suas instituições e seu aperfeiçoamento, assim como programas de governo, contudo, foram considerados temas fora do alcance do entendimento da massa do homem comum e, como tais, marginalizados, quando não completamente ignorados pelos candidatos, inclusive no segundo turno eleitoral. O diagnóstico, que lhes vinha das pesquisas, era o da satisfação dos eleitores com o estado de coisas reinante no país, do qual derivaria a orientação comum de se apresentarem como agentes da continuidade.
As questões ameaçadoras, como as das reformas tributária, política, trabalhista e sindical - nem pensar na agrária e, menos ainda, na previdenciária - deveriam ser deixadas para depois do período eleitoral, com o que se infantilizou o eleitor, visto como um mero consumidor de bens e serviços. É certo que, por acaso, pelo estudo dos votos evangélicos obtidos pela candidata Marina Silva no primeiro turno, veio à tona uma questão efetivamente ameaçadora, a do aborto, que suscitou paixões falsas nos candidatos, postas no lugar das que poderiam revelar as verdadeiras, mantidas dentro do armário e que vão sair dele a partir de agora.
Para o bem e para o mal, a política promete voltar
Findo o processo, vitoriosa a candidata Dilma, mesmo que ainda em estado de ressaca cívica, a cidadania começa a se dar conta de que o mundo de fantasia do horário eleitoral não condiz com o mundo efetivamente existente. Apesar disso, baixadas as cortinas, há muito que comemorar, em primeiro lugar, o fortalecimento das instituições republicanas e da democracia. Um hábito novo - constata-se à vista de todos - se difunde em todas as camadas sociais do país: o do respeito às leis e às regras do jogo, salvo alguns escorregões presidenciais e o reconhecimento, que se generaliza, de que é por aí que se encontram os caminhos que levam a uma política de transformação social. Em segundo, a consagração da questão social como estratégica para a composição das forças políticas e de seus projetos de poder. A vitória nas urnas é inacessível sem ela, e isso foi bem compreendido pelos candidatos.
O mundo efetivamente existente é o da política e o das controvérsias sobre quais os rumos a serem seguidos. A marca do governo Lula foi a de trazer para o interior do Estado uma pluralidade de classes, de frações de classes, alinhadas ou não partidariamente, administrando os conflitos entre elas a partir dos recursos de poder presidenciais, assim interditando a sua manifestação no terreno da sociedade civil escorados em suas representações políticas e sociais. Decerto que essa tarefa exigia qualidades extraordinárias do seu operador, que não faltaram ao carismático Lula.
Dilma não é Lula, nem o seu quatriênio de governo será o mesmo daquele que passou. Aliás, se os registros biográficos servem para algo, não se pode desconsiderar que Lula construiu sua identidade no meio sindical, nas circunstâncias da ditadura militar, avessa a manifestações de uma ética de convicção por parte de um líder operário, e adotou o pragmatismo como lema de vida. Dilma, por sua vez, provém da política, e de uma política, como atesta sua história na resistência armada, orientada pelo culto da vontade, a que, de algum modo, preservou nos seus tempos de militante do PDT de Brizola, um político que também cultuava o primado da vontade em sua forma de agir. Se traços desse estilo pessoal persistem, eles não são favoráveis à difícil tarefa de manter contrários em equilíbrio.
Por outro lado, Dilma governará em condomínio com o PMDB, que terá na vice um dos seus melhores quadros, respaldado por políticos notabilizados, por mais que se fale mal deles, pelo tirocínio político e sabedoria na preservação do poder. O estilo Lula de administração se assentava no monopólio que ele desfrutava no exercício da política e na sua capacidade de interlocução direta com o povo. Dilma não contará com esse monopólio, inclusive porque o PT não lhe concederá tanto quanto concedeu a Lula em matéria de abdicação de poder, e alguns partidos da chamada base aliada se fortaleceram, como o PSB, dirigido pelo governador de Pernambuco, que herdou do seu avô, Miguel Arraes, as mesmas aspirações presidenciais. Tampouco, como notório, é vocacionada para a ida ao povo.
A sinalização da mudança de cenário também é indicada pelo novo mapa dos governadores eleitos, com a oposição à testa dos principais Estados da Federação, o que exigirá um andamento para a política mais consensual, inclusive porque a maioria governamental no Congresso é mais um resultado das estratégias eleitorais dos partidos que a compõem do que de uma união política em torno de um programa. Tal terreno não parece próprio para a emanação de virtudes carismáticas. Aliás, esse foi mais um recado trazido pela campanha eleitoral, quando a opção dos candidatos foi a de se mostrarem como os mais credenciados para impor uma administração racional à economia e às políticas públicas, ao invés de procurar rumos novos para a sociedade.
Com Dilma o que se tem é principado novo, e se ingressa, de fato, em uma ordem burguesa racionalizada, que o messianismo implícito de Lula, ao encarnar a representação do povo, sabia temperar. Sem ele e o seu estilo de negociador nato, os interesses e os conflitos de interesses devem fluir mais soltos, evadindo-se da jurisdição estatal e retomando seus lugares na sociedade civil. Para o bem e para o mal, a política promete voltar.
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional. Escreve às segundas-feiras.
Há consenso entre os analistas de que, nessa disputa pela sucessão presidencial, a linguagem dominante foi a do marketing, e não a da política. Com efeito, durante os longos meses da campanha no horário eleitoral, a agenda que os candidatos seguiam - saúde, educação, segurança - procedia das pesquisas quantitativas e qualitativas elaboradas por especialistas dessa técnica de comunicação, embora não se lhes possa negar o desempenho eficiente ao expor seus antigos feitos nesses quesitos e na apresentação dos que prometiam para o futuro.
Democracia, suas instituições e seu aperfeiçoamento, assim como programas de governo, contudo, foram considerados temas fora do alcance do entendimento da massa do homem comum e, como tais, marginalizados, quando não completamente ignorados pelos candidatos, inclusive no segundo turno eleitoral. O diagnóstico, que lhes vinha das pesquisas, era o da satisfação dos eleitores com o estado de coisas reinante no país, do qual derivaria a orientação comum de se apresentarem como agentes da continuidade.
As questões ameaçadoras, como as das reformas tributária, política, trabalhista e sindical - nem pensar na agrária e, menos ainda, na previdenciária - deveriam ser deixadas para depois do período eleitoral, com o que se infantilizou o eleitor, visto como um mero consumidor de bens e serviços. É certo que, por acaso, pelo estudo dos votos evangélicos obtidos pela candidata Marina Silva no primeiro turno, veio à tona uma questão efetivamente ameaçadora, a do aborto, que suscitou paixões falsas nos candidatos, postas no lugar das que poderiam revelar as verdadeiras, mantidas dentro do armário e que vão sair dele a partir de agora.
Para o bem e para o mal, a política promete voltar
Findo o processo, vitoriosa a candidata Dilma, mesmo que ainda em estado de ressaca cívica, a cidadania começa a se dar conta de que o mundo de fantasia do horário eleitoral não condiz com o mundo efetivamente existente. Apesar disso, baixadas as cortinas, há muito que comemorar, em primeiro lugar, o fortalecimento das instituições republicanas e da democracia. Um hábito novo - constata-se à vista de todos - se difunde em todas as camadas sociais do país: o do respeito às leis e às regras do jogo, salvo alguns escorregões presidenciais e o reconhecimento, que se generaliza, de que é por aí que se encontram os caminhos que levam a uma política de transformação social. Em segundo, a consagração da questão social como estratégica para a composição das forças políticas e de seus projetos de poder. A vitória nas urnas é inacessível sem ela, e isso foi bem compreendido pelos candidatos.
O mundo efetivamente existente é o da política e o das controvérsias sobre quais os rumos a serem seguidos. A marca do governo Lula foi a de trazer para o interior do Estado uma pluralidade de classes, de frações de classes, alinhadas ou não partidariamente, administrando os conflitos entre elas a partir dos recursos de poder presidenciais, assim interditando a sua manifestação no terreno da sociedade civil escorados em suas representações políticas e sociais. Decerto que essa tarefa exigia qualidades extraordinárias do seu operador, que não faltaram ao carismático Lula.
Dilma não é Lula, nem o seu quatriênio de governo será o mesmo daquele que passou. Aliás, se os registros biográficos servem para algo, não se pode desconsiderar que Lula construiu sua identidade no meio sindical, nas circunstâncias da ditadura militar, avessa a manifestações de uma ética de convicção por parte de um líder operário, e adotou o pragmatismo como lema de vida. Dilma, por sua vez, provém da política, e de uma política, como atesta sua história na resistência armada, orientada pelo culto da vontade, a que, de algum modo, preservou nos seus tempos de militante do PDT de Brizola, um político que também cultuava o primado da vontade em sua forma de agir. Se traços desse estilo pessoal persistem, eles não são favoráveis à difícil tarefa de manter contrários em equilíbrio.
Por outro lado, Dilma governará em condomínio com o PMDB, que terá na vice um dos seus melhores quadros, respaldado por políticos notabilizados, por mais que se fale mal deles, pelo tirocínio político e sabedoria na preservação do poder. O estilo Lula de administração se assentava no monopólio que ele desfrutava no exercício da política e na sua capacidade de interlocução direta com o povo. Dilma não contará com esse monopólio, inclusive porque o PT não lhe concederá tanto quanto concedeu a Lula em matéria de abdicação de poder, e alguns partidos da chamada base aliada se fortaleceram, como o PSB, dirigido pelo governador de Pernambuco, que herdou do seu avô, Miguel Arraes, as mesmas aspirações presidenciais. Tampouco, como notório, é vocacionada para a ida ao povo.
A sinalização da mudança de cenário também é indicada pelo novo mapa dos governadores eleitos, com a oposição à testa dos principais Estados da Federação, o que exigirá um andamento para a política mais consensual, inclusive porque a maioria governamental no Congresso é mais um resultado das estratégias eleitorais dos partidos que a compõem do que de uma união política em torno de um programa. Tal terreno não parece próprio para a emanação de virtudes carismáticas. Aliás, esse foi mais um recado trazido pela campanha eleitoral, quando a opção dos candidatos foi a de se mostrarem como os mais credenciados para impor uma administração racional à economia e às políticas públicas, ao invés de procurar rumos novos para a sociedade.
Com Dilma o que se tem é principado novo, e se ingressa, de fato, em uma ordem burguesa racionalizada, que o messianismo implícito de Lula, ao encarnar a representação do povo, sabia temperar. Sem ele e o seu estilo de negociador nato, os interesses e os conflitos de interesses devem fluir mais soltos, evadindo-se da jurisdição estatal e retomando seus lugares na sociedade civil. Para o bem e para o mal, a política promete voltar.
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional. Escreve às segundas-feiras.
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