Em plena temporada das touradas a Espanha enfrenta uma faena, faina, múltipla crise econômica, enormes manifestações de jovens desiludidos, vitória eleitoral da direita corrupta que só agravará a recessão e, como se não bastasse, o desafio de encontrar a verdade histórica nos escombros do biografismo oficial.
Na semana passada foram publicados os primeiros 25 volumes do monumental Dicionário biográfico espanhol, preparado pela Real Academia de História com um total de 50 volumes e 40 mil verbetes. Custou ao erário cerca de 6,5 milhões (cerca de R$ 15 milhões), iniciativa do ex-premiê José Maria Aznar para revisar a história recente da Espanha e, principalmente, branquear a imagem do sanguinário e estúpido ditador Francisco Franco.
No seu verbete, o general aparece como "autoritário, mas não totalitário", além de valoroso, moderado, eficaz e... católico. A Guerra Civil Espanhola (1936-1939) que deixou 150 mil vítimas é tratada superficialmente, a aliança com Alemanha nazista e a Itália fascista é justificada como forma de contrabalançar o irresistível apoio da França e ex-URSS aos legalistas republicanos. Padrinho da obra, Aznar é apresentado como inocente vítima de uma conspiração socialista e não como autor de um trambique eleitoral. O criador da Opus Dei, José Maria Escribá Belaguer, aparece como verdadeiro santo e por aí segue o enviesado dicionário.
Este biografismo massivo e torto não é exclusividade espanhola. Recentemente um grupo editorial português (Leya) lançou no Brasil um cartapácio de 815 páginas, a "biografia definitiva" de Antonio de Oliveira Salazar onde o criador do Estado Novo aparece como figura providencial capaz de evitar o caos em Portugal e no após-guerra devolver o bom senso ao Ocidente. A etiqueta de biografia definitiva é um artifício sutil e torpe para colocar uma pedra sobre a vida de figuras que não convém examinar. Salazar precisa ser reexaminado e revirado, foi a perniciosa matriz do Estado Novo brasileiro de triste memória. Não era apenas um economista conservador, reservado, solitário - era um tipo pérfido, abjeto, que "A Bem da Nação" (a saudação do seu regime), aliou-se a Franco, perseguiu, prendeu, torturou e matou milhares de portugueses. Além de trancar as portas do seu país aos que fugiam da morte nos campos de concentração nazistas.
O economista Pérsio Arida, um dos pais do Plano Real, relatou com extraordinária sensibilidade (revista Piauí, Abril, nº 55) tudo o que sofreu e testemunhou durante o regime militar quando aos 18 anos foi preso no DOI-Codi de São Paulo. Texto memorável, tocante, arrasador, argumento definitivo em favor da criação da Comissão de Justiça e Verdade para retirar dos arquivos e do esquecimento o que se passou durante a ditadura militar.
Embora ausente do texto, o coronel reformado Brilhante Ustra, porta-voz das múmias da repressão e ex-comandante do DOI-Codi paulistano, sentiu-se obrigado a negar os fatos relatados por Arida e o fez com a delicadeza de um brucutu (Folha, 27/5). Persio Arida contestou tranquilamente (Folha, 2/6): "Provar que algo não aconteceu porque não consta de processo num tribunal de exceção é uma afronta à razão e à história".
Hora de encarar estas afrontas à razão. Hora de colocar a história na agenda. A verdade parece inalcançável, mas a busca da verdade é um exercício infalível, sempre compensador. Parte dos delírios contemporâneos nasce de truncamentos intencionais, engendrados para aproveitar a distração das novas gerações. O retorno do funesto Alberto Fujimori através da candidatura da filha, Kaiko, é a melhor prova.
Alberto Dines é jornalista
FONTE: JORNAL DO COMMERCIO (PE)
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