Sem um verdadeiro pacto federativo, demagogos chantageiam o Executivo e usam em proveito próprio os problemas do governo
Montesquieu assevera que um país enorme não pode ser dirigido de maneira republicana. O controle das massas em vastos territórios exige o despotismo. O filósofo tinha em mente a Rússia e outros Estados absolutistas. Os pensadores democráticos idealizaram um recurso para sanar o defeito indicado: a criação ou reforço de unidades políticas menores, reunidas por interesses comuns, cada qual mantendo seus alvos e liberdades. Surgiram então as federações modernas, a começar pelos Estados Unidos da América.
Mesmo ali, a busca do equilíbrio entre as unidades e o todo federativo trouxe problemas insolúveis. Só uma guerra conseguiu impor limites entre os direitos e deveres federais e os das unidades inferiores. Os EUA distribuem competências, salvam prerrogativas. Os Estados possuem leis diferenciadas, inclusive para arrecadar impostos.
A via para o poder municipal, estadual e nacional segue dois itinerários, fora dos quais é quase impossível o mando político. Os grandes partidos, Republicano e Democrata, açambarcam o mercado eleitoral, deixam às demais tendências o papel de meros pesos na balança. Em linguagem de M. Weber e R. Michels, eles são dominados por oligarquias que controlam a máquina da agremiação. Daí a relevância das eleições primárias. Nas últimas, os oligarcas tinham escolhido Hillary Clinton; as bases, Obama.
Por que evocar os EUA, quando se trata de refletir sobre os partidos políticos brasileiros? Desde quando éramos colônia aquele país nos serve de modelo comparativo, em detrimento de nossa autoestima. Os EUA resultam de uma rebelião, de baixo para cima, contra a coroa. O Brasil surge em sentido oposto. Dom João e seus descendentes imperiais tudo fizeram para impedir a prática republicana e federativa. Os princípios das revoluções modernas (a inglesa e a accountability, a americana e a federação, a francesa e a igualdade entre dirigidos e governantes) foram aqui proibidos. Nossa gente sempre foi controlada, de maneira despótica, por um centro esmagadoramente superior em direitos às unidades menores. Tais privilégios (com a desculpa de que os países vizinhos se esfacelaram em microssoberanias) resultam no reforço do absolutismo trazido da velha Europa, o monopólio das políticas públicas e dos impostos nas mãos do Executivo. A soma ditatorial de poderes deixa as regiões sem iniciativa na ordem pública (educação, segurança, transportes, hospitais, esgoto, água, etc.).
Sem verdadeiro pacto federativo, arrancar benefícios para as unidades menores exige grupos de pressão regional no Congresso. Demagogos pressionam o Executivo, movem a chantagem nos plenários e comissões, gabinetes e corredores. Líderes usam em proveito próprio ou grupal os problemas dos governos. Eles garimpam a corrupção ou a falta de comando. Anthony Garotinho apenas repete o modus operandi geral ao imaginar ter encontrado, no caso Palocci, um diamante de 20 quilates. Em suma: a flexível política partidária é gerada pelos excessivos poderes presidenciais (exasperados nas ditaduras do século 20) e pelas oligarquias que trocam apoios a preço vil.
Nos EUA, dois partidos monopolizam a política. No Brasil, o PMDB, federação oligárquica sem par ou concorrente, domestica regiões com base na troca de obséquios e recursos. O partido se firmou no governo Sarney como sanguessuga de votos e, no outro lado, de impostos. Dominando o favor, ele é o núcleo do poder político nacional. Os demais partidos o mimetizam, sem a maestria das suas práticas retrógradas e autoritárias.
Quanto ao PT e ao PSDB, o segundo saiu do PMDB, do qual guardou alguns costumes. Mas seu programa visava a instaurar no Brasil uma democracia moderna e federativa. Em oito anos do governo FHC ele foi digerido pelos oligarcas peemedebistas e seus colegas do PFL e se transformou num arremedo de oligarquia. Hoje, três ou quatro pessoas decidem as vias partidárias, sem preocupação com programas, conquistas de novos eleitores, etc. FHC, em artigo recente, indicou as mazelas tucanas, propondo remédios que, pelo andar da carruagem, jamais serão usados.
O PT reuniu várias correntes (marxistas, católicos, movimentos sindicais) e tinha como alvo socializar o Estado e a sociedade. Em oito anos de governo ele foi domesticado pelas oligarquias e se mostra como federação de micro-oligarcas. Basta ver as tensões entre o partido no Acre, em São Paulo, etc. Os grupos fortes do PT disputam a hegemonia junto à Presidência. O caso Palocci entra no cabo de guerra em que se joga o poder de fato.
No Brasil, dominado por organismos políticos que parasitam o Executivo federal, é impossível fazer oposição e fugir de retaliações contra as cidades e Estados. Daí a tibieza tucana na oposição e falta de coesão do PT nesta crise pré-inflacionária, de corrupção e de comando vivida pelos poderes. O Brasil, enorme território, ainda é governado de maneira despótica. Ele ignora as práticas modernas: democráticas, republicanas, federativas. E nenhum partido mostra disposição para mudar, de fato e de direito, tal cenário.
Roberto Romano é filósofo, professor de Ética e Filosofia na Unicamp. Autor de O caldeirão de medeia (Perspectiva)
FONTE: ALIÁS/O ESTADO DE S. PAULO
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