As autoridades monetárias vêm reduzindo a taxa básica de juros de forma ousada e competente. Para que se torne um ganho permanente e para se enfrentar uma crise diferente é preciso manter o mesmo espírito e mudar outros instrumentos econômicos. Há uma oportunidade para transformar parte da dívida pública em privada e vinculá-la ao aumento de investimentos fixos, como novo motor do crescimento. Essa conversão exige mais mudanças fiscais do que financeiras.
A dívida pública brasileira (subiu para 66% do PIB no conceito internacional) espelha cada vez mais a liquidez privada, cuja preferência, que já era estruturalmente alta, se exacerba nesses tempos de incertezas. Bancos não querem emprestar para bancos, quanto mais para empresas, que, por sua vez, querem acumular caixa de qualquer forma, ainda que seja captando crédito do governo no qual o aplica.
Os recolhimentos compulsórios dos bancos diminuíram em R$ 55 bilhões nos cinco primeiros meses deste ano, mas as operações compromissadas aumentaram em R$ 128 bilhões. O compulsório virou voluntário, e o resultado é que a soma dos depósitos no Banco Central brasileiro já chegou a 20% do PIB, exigindo que detenha uma carteira de títulos públicos superior à dos seus congêneres ricos e no epicentro da crise.
As grandes empresas já tinham promovido um impressionante ajuste na última crise. Um conjunto das abertas, ao início de 2007, detinha R$ 140 bilhões em dívida líquida e também em disponibilidades, porém, passados três anos e uma crise mundial, aquele passivo despencou para R$ 93 bilhões e aquele ativo disparou para R$ 216 bilhões - ou seja, um caixa suficiente para pagar tudo que deviam e ainda sobrar um terço (o mesmo caixa mal cobria metade do que deviam em 2005). Tais números foram levantados por Ernane Torres e Luiz Macahyba, no excelente estudo O Elo Perdido (bit.ly/PlMtiB). Eles concluem apontando alternativas para consolidar um mercado privado de dívidas" e diminuir a dependência do crédito estatal. De fato, o concedido para pessoas jurídicas, entre dezembro de 2008 e maio último, cresceu em 3,6 pontos do PIB, dos quais 3,2 provenientes do BNDES, que, por sua vez, aumentou os créditos captados no Tesouro Nacional em 6,4 pontos do produto no mesmo período.
Como a atual não repete a crise de crédito de 2008 e a maior ameaça é de estagnação no lugar de recessão, toma-se cada vez mais oneroso e pouco produtivo insistir no grande Banco Tesouro Nacional, à custa de endividamento público. Tendo que se dividir com a reestruturação patrimonial, a engenharia fiscal e até a oferta de capital de giro, o crédito que restou vinculado à formação de capital fixo logrou impedir que esta caísse muito. Porém, diante de uma nova e típica crise de demanda, é preciso ir além e assegurar que aumente a taxa de investimento. O problema é que mutuários podem tomar crédito oficial para substituir recursos próprios, ainda mais quando expectativas apontam que o caixa pode voltar a valer mais que o próprio capital.
Para escapar dessa complexa e cara armadilha, os incentivos, inclusive tributários, necessários para estimular empresas a emitirem títulos corporativos de dívida e para investidores optarem por eles no lugar dos papéis públicos devem ser avaliados comparativamente aos subsídios exigidos pelas relações antes expostas. Esta é uma boa hora para reduzir impostos e custos burocráticos sobre a emissão de dívida corporativa e os ganhos que propiciar e, ainda, para incentivar que parcela de tanta liquidez empoçada viabilize a formação do mercado secundário daqueles papéis, sempre vinculando tal nova dívida privada aos projetos de investimentos conduzidos pelos próprios emissores.
Não faltam propostas de medidas governamentais, mas carece de uma visão mais estratégia para compreender que por trás do redesenho do financiamento de longo prazo está uma oportunidade de ouro para redefinir as relações entre o Fisco, a moeda, o câmbio e o crédito no Brasil.
Economista, doutor pela Unicamp
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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