Condenação de réus do mensalão à prisão rompe "tradição absolutista da
impunidade de poderosos", diz professor
Daniel Bramatti
Para o historiador José Murilo de Carvalho, o julgamento do mensalão pode
colaborar para uma mudança na cultura política do Brasil, "no sentido de
torná-la mais republicana".
O Brasil derrubou até um presidente por corrupção, no escândalo Collor-PC
Farias, mas ninguém foi punido. O que mudou?
A impunidade dos poderosos, pela política, pelo dinheiro e pelo status
social sempre foi nossa tradição. No máximo, abriam-se processos que terminavam
com prescrição, absolvição, comutação, todas essas rotas de fuga admitidas em
nossas leis. Creio que o único graúdo apenado e cumprindo pena seja o juiz
Nicolau, mesmo assim em prisão domiciliar. A diferença agora é que houve
condenações que implicam prisão. Ainda teremos pela frente os infindos recursos
que podem reduzir penas, mas, de novo, o que já vimos indica que algo mudou.
Esse algo foi a posição dos juízes do STF.
A adoção de novos embasamentos jurídicos pelo STF, como a teoria do domínio
do fato, o surpreendeu?
Não tenho competência para fazer julgamento técnico da posição dos juízes.
Ela parece, no entanto, estar dentro da esfera legítima de suas atribuições.
Houve sensibilidade para perceber que certos crimes, como de corrupção, não
deixam, salvo extrema incompetência do agente, os chamados atos de ofício.
Ninguém passa recibo de dinheiro sujo. Imagino que a tradição do Judiciário de
não punir graúdos e o desencanto e ceticismo da opinião pública diante dessa
impunidade podem ter levado o procurador-geral da República e a maioria dos
juízes a repensar a jurisprudência anterior.
Teria havido mensalão se a regra no Brasil fosse a punição, e não a
impunidade de políticos envolvidos em corrupção?
Dificilmente nessa dimensão. Corrupção sempre haverá, mas pode ser reduzida
a níveis, digamos, toleráveis. A punição pode acabar pelo menos com o escândalo
da corrupção, e isso já seria um ganho republicano.
A atitude dos políticos em relação à corrupção tende a mudar?
Se houver continuidade e consistência na nova jurisprudência e se ela se
estender às cortes inferiores, com o apoio do Ministério Público, políticos,
gestores públicos e empresários terão de pensar duas vezes antes de violar a
lei. Na hipótese mais otimista, pode estar em curso mudança em nossa cultura
política no sentido de torná-la mais republicana, mais atenta à valorização do
bem público.
De que forma esse resultado afeta a avaliação histórica da chamada "era
Lula"?
Diria que os oito anos de Lula ficarão marcados em nossa história pelo
grande avanço na inclusão social, que chamo de democracia. Não se destacará
pelo que chamo de república.
Os réus dizem que o julgamento foi político e não técnico. Que versão ficará
para a história?
O argumento me lembra um artigo do historiador Kenneth Maxwell. Ele compara
o julgamento do mensalão com o da alçada que condenou Tiradentes. Como se sabe,
no caso da alçada, os resultados já estavam previamente decididos e houve até
compra de juízes. Não posso conceber maior deturpação de fatos históricos. O
que está em julgamento no mensalão não é Tiradentes, mas dona Maria I, não são
os rebeldes, mas a tradição absolutista da impunidade dos poderosos.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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