Como podem a educação e a cultura conduzir-nos de uma democracia de consumidores, na qual um dos grandes critérios para medir a inclusão social é o aumento nas vendas a crédito - para uma democracia em que as pessoas estejam menos presas ao consumo, com o que este tem de arriscado e perigoso: pois é efêmero e, o que é pior, torna o voto quase consequência de certas politicas governamentais? Entre elas, a irrigação de dinheiro na praça, a venda a preço baixo de mercadorias de má qualidade e, sobretudo, o fato ou suposição de que ganha votos quem esparrama o crédito pelo comércio. A confiança no governo, fator crucial para ganhar eleições, parece oscilar em função do crédito na praça.
Esta situação faz pairarem duas restrições à qualidade de nossa democracia. A primeira está no tipo de eleitor e cidadão que ela forma: seus valores principais estão no bolso. Não são valores políticos. São valores do consumo. É verdade que sustentei, anos atrás, em meu artigo "A inveja do tênis", que muitas vezes os pobres sentem maior desejo por bens de consumo, como um tênis de grife, do que pelas necessidades básicas da vida social: saúde, educação, trabalho, moradia e segurança. O consumo é forte na política atual.
A segunda restrição é que o consumo está em boa medida nas mãos do governo. Ele pode, abrindo e fechando as torneiras, influir nos resultados das eleições. A condição é marcar o ano da eleição presidencial pela expansão do crédito ao consumidor. Obviamente, nem do lado do eleitor, nem do governo, essa situação é positiva para a democracia.
O que sugiro aqui é uma crítica que lembra a dos filósofos, ao longo da história, às ilusões do consumo. Podemos viver num mundo das aparências, aturdidos por uma sucessão de prazeres - já que a natureza destes é durarem pouco, precisando ser trocados o tempo todo. Nenhuma sociedade conseguiu, antes da nossa, fornecer tantos prazeres a tantas pessoas. Mas os filósofos criticam isso. Dizem que assim se perde de vista a felicidade que, nas palavras de Rousseau, não é uma sucessão de prazeres, que sempre terminam em saciedade ou frustração, mas "um estado simples e permanente, no qual a alma se basta a si mesma". Pois é. Nada mais longe de nós, exceto daqueles, bem minoritários, que mesmo sendo ricos se orientam para o budismo ou outra sabedoria, geralmente oriental. Porque o grande problema da aposta nos prazeres (dizem os filósofos) ou no consumo (supomos hoje) é o risco, o "day after", a ressaca - e ainda a impossibilidade do autogoverno. Quem é joguete do seu desejo não se autogoverna. Quem é refém de seus prazeres não vive em democracia.
Como mudar isso? Penso que há três ingredientes fortes que podem mudar a orientação das coisas. Começo pelo esporte, mas entendendo-o, a exemplo do movimento MOVE (iniciativa internacional que no Brasil foi encampada pelo SESC de São Paulo), não como esporte competitivo, como projeto de investir milhões em atletas de escol a fim de obter medalhas olímpicas, em sua, não como gerador de espetáculo - mas como promoção da atividade física do maior número possível de pessoas. Basta um dado: por volta de 2005, nosso Ministério das Cidades queria baixar o porcentual de pessoas que vão a pé para o trabalho (por não terem dinheiro para a passagem), enquanto o Departamento de Saúde norte-americano pretendia aumentar esse porcentual (para aumentar o exercício físico dos cidadãos). Há mérito nas duas iniciativas, mas o futuro é da segunda.
Depois, a cultura. Cultura e educação são, se formos à etimologia, duas formas de indicar como o homem se separa da animalidade. Cultura se opõe a natureza. Educação significa sair de um lugar para outro, melhorando. Bebês, que são quase animais, se veem educados para se tornarem humanos. A educação tem assim um currículo, uma regularidade, que a faz ocupar mais de dez anos da vida das pessoas. Ela é absolutamente necessária. Agora, ninguém espera que a cultura tenha um currículo, uma lista de obras imprescindível, sequências necessárias a cumprir, exames a prestar. Há um aspecto obrigatório na educação e um gratuito na cultura, que colocam esta última do lado do prazer, do prazer bem usado.
Assim, dos três fatores que podem reduzir o canto de sereia do consumismo, um precisa ter um roteiro obrigatório e longo, que é a educação, enquanto os outros dois, cultura e atividade física, só funcionam se prodigarem satisfação. Precisamos dos três. Eles constituem fortes exemplos de que o dinheiro não pode tudo, até porque muito esporte e muita cultura são gratuitos, mas mais que isso: o que se ganha com eles não se perde. Esta é a enorme diferença com o consumo. O que se consome, como diz a palavra, está consumido, queimado, liquidado. Já a educação fica, assim como a cultura e a atividade física se incorporam ao sujeito. Posso esquecer todos os filmes que vi, os jogos de que participei, mas minha mente e meu corpo se enriqueceram graças a eles.
Será então o fortalecimento destas três áreas um bom antídoto ao avanço, que até parece irresistível, dos excessos nos games, nas unhas esmaltadas das moças em ascensão social, da ideia de que "my pussy é meu poder", que reduz o poder a um de seus componentes básicos, primitivos, o de que tudo gravita em torno de quem controla o acesso ao prazer sexual, o homem pela opressão, a mulher pela sedução? Nenhum desses prazeres é mau em si. A questão, e lembro Foucault, está no uso dos prazeres. Eles precisam ter seu devido lugar. E para o terem é preciso fortalecer essas três áreas que mencionei: para além do prazer, a felicidade.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico
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