Produtor de leis em escala industrial, o Brasil convive com normas seculares e sem sentido e com a lentidão do Congresso em atualizar a legislação, fatores que resultam em um cipoal jurídico que prejudica os cidadãos e a economia
Você sabia que o comércio marítimo do Brasil é regulado por uma legislação dos tempos do Império? Que o Código Penal foi redigido durante o autoritarismo do Estado Novo, e o Código Eleitoral, no período nada democrático do regime militar? E que, após 25 anos, a Constituição tem mais de cem dispositivos pendentes?
São peculiaridades de um país acostumado a produzir normas em ritmo fabril, mas faltoso ao priorizar as leis que, de fato, influenciam a vida do cidadão. Atrás de equilíbrio, o Congresso criou no final de março uma comissão que tentará enxugar nosso cartapácio jurídico.
– É um paradoxo, mas o excesso de leis convive com a ausência de leis. E as leis que faltam são aquelas que a população mais necessita, como o direito à saúde, à educação e à moradia – aponta o constitucionalista Rogerio Dultra dos Santos.
Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Rogerio alerta que normas antigas não são necessariamente ruins nem uma singularidade nacional. Contudo, no Brasil, há textos que precisam de atualização, principalmente por causa do seu grau de detalhamento ou atraso em relação a fenômenos modernos. Se o Código Comercial fala em "súditos do Império", o comércio eletrônico tem status quase marciano.
O Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, proíbe rádios e TVs de "ultrajar a honra nacional", enquanto o Código Penal Militar, de 1969, prevê a pena de morte por fuzilamento, também presente na Constituição em casos de guerra.
Senado prepara reforma de códigos
Na tentativa de afinar as normas com a sociedade, o Brasil tenta modernizar seu aparato legal, um esforço patrocinado pelo senador José Sarney (PMDB-AP). Seis dos 17 códigos passam por reformas arrastadas no Congresso. Definições de crimes, a tramitação dos processos, o funcionamento do sistema eleitoral e os direitos do consumidor estão na revisão, sem data para ser concluída.
Dentro do paradoxo citado pelo professor Rogerio, quem mais sofre é a Constituição e seus pontos não regulamentados, que deixam direitos em aberto. Criticada por ser extensa, a Carta de 1988 é reflexo do período em que nasceu. Recém saído de duas décadas de ditadura, o Brasil optou por um texto detalhista, forma de garantir a transição política.
Para cobrir as lacunas, o Congresso aposta na nova comissão mista, composta por deputados e senadores, que em seis meses terá de solucionar os 142 dispositivos pendentes na Constituição e enxugar mais de 180 mil diplomas normativos. Integrante do grupo, o senador Pedro Taques (PDT-MT) defende a "lipoaspiração" nas leis:
– Esse cipoal causa insegurança jurídica, burocracia e impede o crescimento do país.
Para o constitucionalista Cristiano Paixão, professor da Universidade de Brasília (UnB), a comissão precisa ter prioridades. As regulamentações pendentes têm níveis de urgência. A função do vice-presidente da República, prevista na Constituição e ainda carente de lei complementar, pode esperar. Já a regulamentação do direito de greve ou da aposentadoria especial dos servidores públicos merece maior atenção.
– A não edição da lei sobre o vice-presidente importa muito pouco, mas há outros casos em que a omissão gera um prejuízo para o exercício dos direitos do cidadão – destaca Paixão.
Também integrante da comissão parlamentar, o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) confia em um trabalho rápido e propõe outro avanço: facilitar o acesso à legislação com a criação de um site de busca das leis por assuntos.
– Retirar o que caiu em desuso é importante, mas fazer o conhecimento da lei chegar ao cidadão é mais. Precisamos pensar nas leis e no acesso a elas para um mundo digital – argumenta ele.
Fonte: Zero Hora (RS)
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