Memória política - Livro
"Confidencial - Documentos Secretos da Ditadura Militar" reúne registros de um período que não deve ser esquecido pela nação
Ciro Carlos Rocha
Primeiro de abril de 1964, por volta das 19h, Casa Amarela, Zona Norte do Recife. Severino Salustiano da Silva, 44 anos, escriturário e pedreiro, distribuía panfletos a moradores do bairro. Calcularia, dias depois, "na ordem de quinhentos" as peças que tinha para distribuir à população. Impressos em mimeógrafos, os panfletos denunciavam que o então governador Miguel Arraes de Alencar estava sitiado no Palácio do Campo das Princesas - sede do governo estadual - e que era preciso resistir.
Não demora muito, seu Severino, trabalhador, como a esposa, do Movimento de Cultura Popular (MCP), era preso acusado de ligação com "elementos comunistas". O golpe de 64 dava os primeiros passos. Arraes já estava preso e, 17 dias depois, seu Severino, em depoimento, dizia ter pensado que estava produzindo "um bem", porém verifica agora que estava produzindo "um mal".
O depoimento do escriturário foi tomado no dia 18 de maio de 1964, no Quartel da Segunda Companhia de Guardas, no Recife, pelo tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima, tendo o capitão Noaldo Alves Silva atuando como escrivão. Objeto de Inquérito Policial Militar (IPM) inserido no processo nº 35.970 existente nos arquivos do Superior Tribunal Militar (STM), a sua prisão é tratada em um dos 177 documentos divulgados agora no livro Confidencial - Documentos Secretos da Ditadura Militar, do advogado, escritor e anistiado político Hiram Fernandes.
O livro, em dois volumes totalizando 1.585 páginas, é fruto de quase uma década de pesquisa e estudos e será lançado na próxima quinta-feira (30), a partir das 19h, no Museu do Estado.
Os Arquivos Públicos foram alvo importante da pesquisa, mas grande parte dos "documentos secretos" vem mesmo é dos inúmeros processos que o golpe militar fez produzir no STM. Num momento em que o Brasil assiste às discussões e revelações no âmbito das Comissões da Verdade instaladas em todo o País, páginas e mais páginas de IPMs, antes inéditas para o grande público, estão reunidas na edição e fazem o leitor se deparar com episódios e mais episódios da repressão política.
De personagens conhecidos do grande público, como o ex-governador Miguel Arraes e dezenas de outros políticos que sofreram a dureza do golpe - e também de personagens "anônimos", como o escriturário e pedreiro que distribuía panfletos e terminou preso (veja detalhes nesta página).
De Arraes, dois trechos do seu depoimento retratando o dia do golpe são destacados numa das contracapas:
1- "Que depois de cercado e quando lhe foi trazida a ordem de deposição, transmitida pelo General Castilho, foi lhe ainda dada a oportunidade de deixar o Palácio e, portanto, de se abrigar ou de fugir".
2- "Que, não quis sair do seu posto, pois, não se julgava culpado de qualquer crime, que, as ações do depoente, portanto, confirmam o seu permanente propósito de manter a ordem e de cumprir as obrigações decorrentes do seu mandato".
"Anseio de liberdade sempre foi forte"
Em seu livro, o advogado Hiram Fernandes relata histórias de personagens vítimas do regime militar. Ele mesmo foi preso, de menor, depois do golpe
"Quis fazer um resgate da História, para que não ficasse apenas na história oral", aponta Hiram Fernandes o objetivo principal de sua pesquisa, retratada nas páginas de Confidencial - Documentos Secretos da Ditadura Militar. Os fatos narrados não englobam apenas o período da ditadura, mas vai dos anos 50, com a campanha "O Petróleo é Nosso", ao movimento das Diretas Já, nos últimos suspiros do regime militar, em 1984. O livro traz também um caderno iconográfico com registros fotográficos de momentos históricos, como um comício em Caruaru da campanha de Pelópidas Silveira a governador do Estado, em 1947, com Luiz Carlos Prestes, Davi Capistrano e Gregório Bezerra no palanque, de 33 presos políticos perfilados na Casa de Detenção do Recife, da prisão de estudantes em Ibiúna, São Paulo, o aparato militar montado no porta do Paládio das Laranjeiras, Rio, no dia da assinatura do AI-5, uma das centenas de imagens censuradas na época. Traz, ainda, um DVD com os 177 "documentos secretos".
Assim como Mércia Albuquerque, advogada falecida em 2003 e de quem foi amigo, Hiram Fernandes foi advogado de presos políticos e de familiares de desaparecidos. Assumiu processos indenizatórios contra os governos da antiga Guanabara, do Rio de Janeiro, de Pernambuco e da União, tendo mantido contato intenso com muitos dos personagens que têm histórias contadas no livro.
Ele mesmo foi preso quando, aos 16 anos (menor) e nos ares de 64, sentiu o "braço armado da repressão política". Escrevia textos que eram rodados em um pequeno mimeógrafo e, depois, distribuídos nas ruas pelo poeta Severino Quirino, assim como fazia o pedreiro Severino do início deste texto. Como outros estudantes, Hiram atuava no Movimento de Resistência à Ditadura, que tinha fortes ligações com o antigo PCB (Partidão). Lembra ter recebido o mimeógrafo de outro estudante, o hoje jornalista e escritor Homero Fonseca, que atuava na União Secundarista de Pernambuco. A peça foi, posteriormente, doada ao Partidão.
Detido e levado ao 14º Regimento de Infantaria, em Socorro, Jaboatão dos Guararapes, teve a prisão preventiva pedida pelo promotor Eraldo Gueiros Leite, que depois viraria governador (biônico) de Pernambuco, entre 1971 e 1975. Mesmo menor, também, respondeu a um IPM. "Tinha que ter uma resistência, não havia imprensa livre. Em Pernambuco, as questões libertárias sempre foram levantadas, o anseio de liberdade sempre foi muito forte. E a defesa de presos políticos que fiz, depois, só reforçaram o despertar dessa consciência", afirma Hiram Fernandes, que tem o prefácio do seu livro assinado pelo governador Eduardo Campos (PSB).
Livro: Confidencial - Documentos Secretos da Ditadura Militar
Autor: Hiram Fernandes
Lançamento: Quinta-feira (30/05)
Hora: 19h
Local: Museu do Estado, Av. Rui Barbosa, 960, Graças
Fonte: Jornal do Commercio (PE)
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