Um homem magro, da pele da cor da erva-mate, dono de um sorriso largo. Essa a primeira imagem que me vem à memória quando penso nele. Vestia-se com elegância discreta, da maneira mais simples possível. Tinha o curioso hábito - pelo menos para o verão carioca - de fechar até o último botão da camisa social, quase sempre branca ou amarela, muitíssimo bem passada. Eu me recordo que do bolso esquerdo de sua calça pendia uma corrente de ouro, que dava sustentação a um belo relógio, redondo como uma moeda antiga. O camarada tinha mais anéis do que dedos nas mãos. Vez por outra ele se apoiava em uma bengala, devido à dor que sentia nas plantas dos pés, dor esta provocada por cravos inflamados. Não fora pela elegância discreta, passaria perfeitamente por Carlitos. E estava sempre com um violão debaixo do braço, como se este materializasse uma extensão de seu próprio corpo. Talvez fosse mesmo.
Quando ele não comparecia à nossa casa, meu pai e eu o visitávamos em seu château modesto. E põe modesto nisso: o nosso amigo morava em um pequeno quarto, com paredes pintadas de verde, no bairro do Estácio. Acredito que na própria Mém de Sá, já não me lembro bem. Só não me esqueci da escada comprida de madeira que tínhamos de subir – ou, melhor dizendo, escalar - para chegar ao santuário dele.
Sua vida nem sempre fora um mar de rosas. Parece até que já fizeram muamba pro rapaz. Filho de cozinheiro, ele trabalhou alguns anos como pedreiro. Por causa de umas tantas desavenças, curtiu alguns anos de cadeia. Quem disse que malandro não tinha palavra? Ele era aquele que na escola de samba tocava cuíca, tocava surdo e tamborim. Compositor inspiradíssimo, ele nos legou Adeus, em parceria com ninguém menos do que Noel Rosa! Com Nilton Bastos, compôs Se você jurar - ou a mulher não é mesmo um jogo difícil de acertar? Mas o homem como um bobo...
Era um sujeito bondoso. Dava a impressão de ser um homem feliz, apesar dos problemas que enfrentou. Gozava da amizade de muita gente bamba, como Prudente de Morais, neto, jornalista e participante da Semana de Arte Moderna de 22. Tenho saudades dos sambas que cantava lá em casa, enquanto aguardava a feijoada que minha mãe preparava pacientemente na cozinha. Quanta sabedoria havia neles! Isso acontecia normalmente em um sábado. Ele cantava com voz fanhosa, ligeiramente empostada. Sua alegria de viver se espalhava pelos quatro cantos da nossa casa, contagiando até as crianças, ou seja, eu e minha irmã: "Aurora vem raiando anunciando o nosso amor..."
Não era por acaso que, para muitos, ele era São Ismael Silva, uma espécie singularíssima de santo profano criador da Deixa Falar, a primeira escola de samba do carnaval brasileiro. Uma instituição viva.
Ismael Silva: Saudades e adeus - palavra que faz chorar...
* Historiador e jornalista
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