Por Daniel Sarmento - Procurador-regional da República e professor de Direito Constitucional da Uerj
O país tem boas razões para celebrar os 25 anos da Carta de 1988, a “Constituição cidadã”, nas palavras de Ulysses Guimarães. Afinal, trata-se de uma Constituição democrática, que tem como preocupação central a proteção e promoção dos direitos fundamentais. E, diferentemente do que ocorreu com as nossas constituições anteriores, esta possui razoável eficácia social. Desde a sua promulgação, vêm ocorrendo eleições livres e regulares no país; a oposição e a imprensa desfrutam de liberdade; as crises institucionais são equacionadas seguindo as “regras do jogo”; e instituições como o Poder Judiciário e o Ministério Público funcionam com independência. Ainda mais importante, a cidadania se apropriou do discurso constitucional e aprendeu a reivindicar seus direitos, nas ruas e nas Cortes.
Porém, a Constituição de 1988 não tem sido suficiente para equacionar o mais grave dos problemas nacionais: a nossa crônica desigualdade. Esta se manifesta de múltiplas formas em nosso cotidiano, como na violência simbólica das relações de emprego doméstico; nas “masmorras medievais” em que são trancafiados pobres e pretos; nas nossas diferenças sociais vergonhosas; nas “carteiradas” e na impunidade da elite. No Brasil, como na Fazenda dos Bichos de George Orwell, todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros.
A culpa disso não é, certamente, da Constituição. A Carta de 1988 é igualitária e tem respaldado avanços importantes neste campo, como o reconhecimento da união homoafetiva e da legitimidade das políticas de ação afirmativa para pobres e negros. Porém, a persistência de uma cultura social fundada na desigualdade sabota a Constituição, na medida em que naturaliza ou torna invisíveis as violações de direitos dos grupos mais vulneráveis.
Essa cultura chancela a existência de verdadeiros quistos de estado de exceção no interior do estado de direito. Nos bairros de classe média, por exemplo, vigora a inviolabilidade do domicílio; já nas favelas vale a “lei do Capitão Nascimento”. A liberdade de expressão protege os artistas consagrados e os veículos de comunicação, mas jovens manifestantes, bailes funk e rádios comunitárias são tratados como casos de polícia. Enfim, a Constituição de 88 tem incontáveis virtudes, mas é urgente estender a todos o alcance dos seus princípios civilizatórios, superando as hierarquias que ainda impregnam as nossas relações sociais.
Fonte: O Globo
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