Quase sempre o critério para nomear uma instituição ou logradouro é o da bajulação. E renomear geralmente é trocar um bajulado por outro
A iniciativa destes dias da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, de pedir a substituição do nome de uma escola de ensino fundamental de Nova Iguaçu de Presidente Costa e Silva por Senador Abdias do Nascimento, parece mais indecisão entre justiçamento político e justiçamento racial do que outra coisa.
Como muitos sabem, o general Artur da Costa e Silva foi ministro da Guerra do primeiro governo da ditadura militar e, em seguida, presidente da República. Foi ele quem promulgou o Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968, que abriu as portas do poder para a dura repressão que se seguiu: censura aos periódicos, cassações de mandatos, de direitos políticos, banimentos, aposentadoria compulsória de cientistas e professores, prisões, torturas, sequestros, desaparecimentos e assassinatos. Um elenco completo de barbaridades.
Alguém teve a ideia ditatorial e antieducativa de dar o nome do general a uma escola para crianças. Como é próprio de casos assim, as crianças que ali estudassem passariam a vida louvando como herói o que muitos julgavam e ainda julgam ser um vilão. Questão de ponto de vista, sem dúvida. Mas não só. Talvez se possa dizer, em favor de Costa e Silva, que ele teve a coragem de assinar um ato complementar que proibia os despejos de posseiros na região amazônica sem prévia audiência do Incra. Impediu, assim, que a justiça vulnerável ao poder pessoal dos potentados da roça e do latifundismo rentista continuasse usando e abusando de suas prerrogativas para injustiçar os desvalidos. A violência e os abusos eram de tal ordem que chegavam a ter características de verdadeiro genocídio.
Como nem todos sabem, Abdias do Nascimento foi um distinto intelectual negro, professor, antropólogo, teatrólogo, poeta, de carreira e grande prestígio internacionais, ativista internacionalmente reconhecido em favor da igualdade racial e civil dos negros. Além disso, foi deputado federal e senador da República. Morreu quase centenário em 2011. Abdias já deveria ter sido nome de escola, e de muitas escolas, há muito tempo. É o tipo de personalidade que, até como nome de escola, educa. Que tenham preferido propor-lhe o nome como senador e não como professor já é o mau sinal de que a tentação dos signos do poder prevaleceu sobre os enormes méritos emancipadores que há na modéstia da honrada condição de professor. Esse equívoco diminui e compromete o gesto. Abdias foi muito mais do que um senador e do que um senador pode ser.
O uso de nomes inadequados em instituições como a escola difunde subliminarmente concepções da sociedade e do homem incompatíveis com as conquistas democráticas e os ideais da cidadania, da democracia e mesmo da civilização. Em 1969, uma investigadora do Dops de São Paulo, convocada a participar de emboscada para matar Carlos Marighela, ativista da luta armada contra a ditadura, morreu no tiroteio ocorrido na Alameda Casa Branca, em São Paulo. Em retribuição, a ditadura deu seu nome a uma rua no bairro do Limão e a uma escola elementar na zona leste. No muro da escola, grafitagens ingênuas dos estudantes a celebram como heroína nacional, assim considerada pelas conveniências dos donos do poder de então: participara do assassinato planejado de um inimigo do regime. Que educação é essa? Por meio desse memorial, a ditadura já banida invadiu e continua invadindo a escola e a mente das crianças para a pedagogia do opressor que supostamente já não existe, mas está lá.
Nas mudanças de nomes de vias públicas e de escolas, hospitais ou outras instituições, com certa facilidade é possível constatar que esses nomes são dados segundo um critério. Quase sempre, o critério é o da bajulação dos poderosos. Com a mesma facilidade, quando mudam os donos do poder, surge um fenômeno para o qual invento uma palavra neste momento: desbajulação. O nome do antigo bajulado é trocado pelo nome de um novo bajulado. Esse troca-troca evidencia a mentalidade profunda que rege nosso quase imobilismo político. Com tanta adesão súbita e fácil, é evidente que o Brasil nunca vai mudar, senão no mero faz de conta da mudança.
Foi o que se viu na queda da monarquia e na proclamação da República. Até a manhã de 15 de novembro, havia poucos e insuficientes republicanos no Brasil. Na hora do almoço o número já havia aumentado. Na manhã do dia seguinte, o Brasil já era republicano desde sempre. Mas a história da República tem sido a história da espera do retorno do imperador que a República depôs e baniu. Esperou-se encontrá-lo em Getúlio Vargas, em Jânio Quadros e mesmo em Lula. No plebiscito decorrente da Constituição de 1988, para decidir o regime político do país, entre república e monarquia, muito eleitor confessadamente petista votou pela monarquia na esperança de que, se Lula fosse eleito presidente, seria coroado imperador e teríamos, portanto, o fim da política cotidianamente satanizada por muitos. Pesquisa feita por um jornal de São Paulo, na época, mostrou isso.
José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros, de A sociologia do Brasil lúmpen e místico (Contexto).
Fonte: O Estado de S. Paulo / Aliás
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