Tenho acompanhado a Jornada Mundial da Juventude ao longo desta semana e, pelo menos até o momento em que escrevo este texto, o faço com surpresa e admiração. Apesar das vicissitudes de transporte e circulação, há muito tempo não via as ruas da cidade tão alegremente movimentadas e coloridas. Mesmo por onde o Papa não é esperado passar, bandos de moças e rapazes carregam bandeiras de seus países e cantam hinos em diversas línguas, num carnaval de rua cosmopolita, sereno e empolgante. Confesso que até me emocionei ao ver casualmente, no calçadão da Avenida Atlântica, um inesperado encontro de confraternização entre um grupo de jovens iranianos com a bandeira de seu país e outro de americanos com a dos Estados Unidos.
Não é preciso ser católico, nem ter qualquer religião, para se encantar com o que está se passando no Rio de Janeiro. Estamos assistindo a uma experiência daquilo que o rabino Abraham Skorka, coautor de livro em parceria com o Papa Francisco, "Entre o céu e a terra", chamou de "cultura do encontro". Um encontro não é uma adesão ao outro, nem mesmo a abertura de um diálogo em busca de alguma verdade única e absoluta. Um encontro é apenas isso mesmo, a aproximação entre pessoas, mesmo que elas não tenham as mesmas ideias, nem estejam dispostas a pensar sobre o que pensam.
Um dos aspectos mais relevantes da Jornada tem sido o dos diversos eventos inter-religiosos, uma busca sem tensão por alguma coisa em comum entre crenças tão diversas. A busca do abraço universal, do humano em cada fé. Assisti a reuniões de peregrinos católicos de vários países com praticantes da umbanda e do candomblé cariocas, no Estácio e em Caxias. E a uma mesa de debates na PUC, na Gávea, da qual participavam bispos, rabinos e xeques, com uma plateia lotada de jovens católicos, judeus e muçulmanos. Nesses encontros, o que se punha em discussão não era a verdade teológica de cada um, mas a necessidade de paz, de entendimento e de amor num mundo tão conturbado, inclusive por guerras religiosas.
Nunca acompanhei as Jornadas anteriores, nem sei mesmo do que cada uma delas tratou no passado, em Roma, Colônia ou Madri. Mas imagino que as novidades comportamentais trazidas pelo novo Papa tenham influenciado a atmosfera do que está acontecendo no Rio. Num livrinho de extrema pertinência sobre suas ideias, "Fancisco de Assis e Francisco de Roma", Leonardo Boff, um dos principais pensadores da Teologia da Libertação, faz a pergunta que todos nós gostaríamos de poder responder afirmativamente: "Uma nova primavera na igreja?" No seu discurso em Aparecida, o Papa pode ter-nos respondido a pergunta, quando pediu aos jovens que se deixassem surpreender pela vida e que a vivessem em alegria. E ainda mais em sua fala militante na favela de Manguinhos, quando exortou a juventude a não perder a sensibilidade para as injustiças e para a corrupção. É como se tivéssemos atraído para cá e tornado universal a discussão do tema que hoje nos é mais caro.
A Igreja Católica, a primeira e mais antiga organização globalizada do planeta, precisa responder às ânsias de seu povo no século 21. Ela segue prisioneira de conceitos anacrônicos sobre política social, drogas, moral sexual, aborto, homossexualidade, celibato, pesquisas com células-tronco e até "a forma de poder absolutista dos papas", como diz Boff. Mas Francisco está certo quando diz que tudo começa com o encontro. E ele sabe promover esse encontro: que homem público brasileiro sairia ileso daquele engarrafamento que o Papa enfrentou em sua chegada ao Rio, com a janela do pequeno carro aberta e a disposição de cumprimentar a multidão que se aproximava dele?
É ridículo e mesquinho reclamar de gastos públicos com a Jornada e a vinda do Papa ao Brasil. Em primeiro lugar, porque o estado não está só cumprindo obrigação protocolar, mas também fazendo um investimento com retorno certo, produzido pelo que deixa no Rio a multidão vinda do exterior e de outras cidades do país. Além disso, o estado tem mesmo o dever de investir no ordenamento, segurança e atendimento médico das manifestações de massa realizadas na cidade, não importa de que natureza. Assim como nem todo brasileiro é católico, nem todo carioca é carnavalesco, e nem assim é justo contestar o que o estado gasta com o carnaval. Mas para alguns, Rei Momo pode; o Papa Chico, nem pensar.
Independentemente de qualquer profissão de fé, Francisco nos anuncia o projeto de um mundo mais simples e mais humano. Um mundo sem ostentação e sem pompa, sem a hegemonia irracional da riqueza e do consumismo delirante que destrói o planeta e a humanidade. Seu amor à esperança é comovente. "Não deixem que lhes roubem a esperança", disse ele no Rio, aos participantes da Jornada Mundial da Juventude, "sejam vocês mesmos os portadores da esperança." Não é pouco que um líder mundial de sua importância pense e fale desse jeito.
Cacá Diegues é cineasta
Fonte: O Globo
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