Temos o hábito de desconfiar da palavra dos políticos, especialmente na estação das eleições. O ceticismo é sempre saudável, mas não convém descartar programas de campanha sem uma leitura atenta. As flácidas 70 páginas das diretrizes programáticas da aliança PSB-Rede, anunciadas por Eduardo Campos e Marina Silva, têm um pouco de tudo --e, na hora decisiva, talvez sejam quimicamente reduzidas ao papo furado convencional. No meio daquele jardim monótono, porém, destacam-se três ou quatro flores incomuns: os sinais de uma ruptura potencial com a velha ordem política abrigada no casulo do lulopetismo.
O compromisso com uma reforma do Estado consubstancia-se nas metas de "consolidar uma burocracia pública meritocrática" e "diminuir a quantidade de cargos de livre provimento". A persistência do patrimonialismo, atualizado na "era Lula", expressa-se antes de tudo na captura da máquina da administração pública pela elite política. Os partidos brasileiros não existem para oferecer propostas doutrinárias à sociedade: são ferramentas destinadas a organizar a pilhagem de um tesouro, formado por cargos em ministérios, autarquias e empresas estatais.
"Presidencialismo de coalizão" é o eufemismo cunhado por acadêmicos cínicos para nomear um sistema político hostil ao interesse público, endemicamente corrupto, que se reproduz parasitando as pessoas comuns. Nas jornadas de junho, a sociedade rebelou-se precisamente contra isso, provocando pânico visível entre gregos e troianos. Campos e Marina dialogam com as ruas quando fazem da reforma do Estado a condição prévia de uma reforma política substantiva. Se tiverem a coragem de enfrentar a velha ordem, rompendo com as máfias encapsuladas em todos os partidos, adicionarão números radicais à equação do emagrecimento dos cargos de indicação política.
A proposta de "repactuar o federalismo brasileiro" adquire densidade no diagnóstico crítico da concentração de receitas na União e no compromisso com uma reforma tributária destinada a "assegurar maior autonomia aos Estados e municípios". A cíclica peregrinação de governadores e prefeitos ao Planalto, num vergonhoso ritual de mendicância, denuncia a natureza farsesca da Federação e esvazia o sentido das escolhas políticas dos eleitores.
O poder discricionário quase absoluto do governo central sobre tributos arrecadados em todo o país funciona como instrumento de chantagem e cooptação. No fundo, encerradas as eleições, configura-se algo como o Partido do Planalto: uma santa aliança dos governantes, em todos os níveis, disfarçada por hipócritas menções à cooperação administrativa suprapartidária. A ex-ministra Gleisi Hoffmann, braço direito de Dilma Rousseff, acusou Eduardo Campos de nada menos que "ingratidão". Essa flor do Lácio da velha ordem, esplendor e sepultura de costumes políticos anacrônicos, invocou supostos deveres de lealdade do governador de Pernambuco, derivados do "apoio financeiro que a União deu àquele Estado". Nas suas palavras deploráveis, dignas de uma monarquia, encontra-se a melhor justificativa para a reorganização do pacto federativo.
Campos e Marina já não são mais dissidentes do bloco de poder lulopetista. A constatação de que "a sociedade brasileira não tolera mais este velho pacto político que mofou" transfere-os para o campo da oposição. A crítica ao "receituário minimalista" do "choque de gestão", empregada por um PSDB carente de vitalidade nas últimas eleições presidenciais, e os ensaios na direção das reformas do Estado e da Federação são indícios de que a aliança PSB-Rede pode evoluir, surpreendentemente, para a contestação dos pilares da velha ordem.
Papo de campanha? Conversa mole de candidato minoritário em busca de um lugar ao sol? É possível. Mas convém prestar atenção nessas flores coloridas que nasceram em terra árida.
Fonte: Folha Online
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