A geração de Coutinho, à qual eu também pertenço, fez sua cabeça nos anos 1960, quando o mundo viveu revoluções
Para os que creem, Deus é o que não sabemos, o que não conhecemos, o que não podemos controlar. Atribuímos o mistério a Deus para evitar a depressão da impotência. Para os que não creem, é só trocar Deus pelo destino.
Quando conseguimos explicar os fenômenos diante de nossos olhos, o conhecimento religioso e as superstições se tornam mito, derrubando a autoridade dele e delas. Durante séculos, o Sol girou em torno da Terra, para não abalar o poder da Igreja.
Segundo a Gênese, o primeiro delito cometido por um ser humano foi o do conhecimento. Contrariando as ordens do Senhor, Adão e Eva colheram o fruto da árvore do bem e do mal, conquistaram a razão que os diferenciaria do resto da criação.
O segundo delito foi um assassinato em família — com ciúme de Abel, Caim assassinou o irmão. O “familicídio” continuaria povoando a mitologia de nossas origens, desde que Abrãao se dispôs a sacrificar seu filho para servir a Deus. Ou quando Édipo matou Laio, seu pai.
Em nome da razão que conquistamos para desgosto de Deus, não conseguimos aceitar o inesperado, o que consideramos antinatural, aquilo que os gregos chamaram de tragédia. Preferimos não tentar entendê-la, não tentar decifrar sua natureza. Aceitamo-la assustados e inertes, como uma fatalidade que não podemos evitar, nem nos interessa saber de onde veio ou para onde vai.
Desde domingo passado, muita coisa se escreveu sobre o cineasta Eduardo Coutinho, mas quase nada sobre a tragédia de que ele foi vitima. Os elogios a ele e seu trabalho são mais do que justos. Coutinho não foi somente o maior documentarista da história do cinema brasileiro, como também um dos cineastas mais importantes no cinema contemporâneo em todo o mundo.
Seus filmes eram uma tentativa permanente de conhecer e entender o ser humano, sobretudo aqueles a nosso lado, os mais desimportantes. Coutinho sabia que a humanidade era uma só, que as nossas diferenças não nos separavam. Era tudo natural e ele observava isso com curiosa naturalidade.
A geração de Coutinho, à qual eu também pertenço, fez sua cabeça nos anos 1960, quando o mundo viveu revoluções de comportamento, gestos de rompimento com o passado de injustiças, preconceitos e regras inúteis. A negação das instituições estabelecidas nos levou aos direitos civis, à liberdade sexual, à cultura pop, à consagração do relativismo, à afirmação dos negros, à liberação das mulheres, ao orgulho gay, à informação instantânea, ao valor da psicanálise como reconstrução do indivíduo, a sexo, drogas e rock’n’roll.
Os anos 1960 acolheram as aspirações de uma juventude que queria mudar o mundo de um modo diferente do proposto até ali. Segundo Contardo Calligaris, a contracultura foi “a única revolução do século 20 que deu certo e, ao dar certo, melhorou a vida concreta de muitos, se não de todos”.
Uma dessas mudanças estava na antipsiquiatria inaugurada pelo italiano Franco Basaglia e pelo inglês Ronald Laing. Para esses cientistas, o que era considerado tradicionalmente como loucura eram apenas formas originais e às vezes mais radicais de as mentes humanas se manifestarem. O “louco” convencional passou a ser uma espécie de arauto de novidades sobre o homem, que o “normal” não conseguia exprimir.
Nos anos 1970, Michel Foucault, um de nossos ídolos do relativismo, publicava livro cujo título era a primeira frase do depoimento feito na Justiça francesa, em 1835, por um preso por assassinato: “Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão.” Pierre Rivière, jovem camponês, assassinara a golpes de foice sua mãe grávida de sete meses, sua irmã de 18 anos e seu irmão de 7 anos. O que o teria motivado a cometer um ato de tamanha brutalidade? Foucault tentava explicá-lo de modo inteligente e sofisticado, opondo o trabalho jurídico ao psiquiátrico. Mas a mãe e os irmãos de Pierre Rivière estavam definitivamente mortos.
Esses crimes de “familicídio” se repetem ao longo da história da humanidade. Agora que a população do planeta se multiplica em ritmo geométrico, tudo o que acontece com ela também se multiplica, inclusive a tragédia. E a informação nos chega mais rapidamente, pela informação instantânea através do mundo inteiro, aumentando a importância do número de crimes.
A vida acaba sem que você saiba de onde veio o golpe, mas uma obra como a de Eduardo Coutinho ficará para sempre. No curso da história, seus filmes estarão sempre na lembrança de todos, enquanto sua morte mal será lembrada como uma trágica anedota que não altera o que ele fez. Mas... e se Daniel pudesse ter sido internado, afastado, de algum modo mais humano que a barbárie do hospício, do convívio com aqueles que poderia destruir?
É preciso fazer um documentário sobre Coutinho, é a maior homenagem que se pode prestar a ele.
Não um doc inocente, mas um filme que faça perguntas que desvendem a vida, como ele sabia fazer.
Não basta o clássico depoimento de amigos que o amavam e o admiravam tanto, como todos nós. É preciso ouvir os personagens e os entrevistados semelhantes aos de seus filmes, seus vizinhos, seu filho promotor, a viúva ferida e sobretudo Daniel.
Fonte: O Globo
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