Podemos ver nas ruas a preciosa origem do carnaval profundo. Lá, estão os desesperados, os famintos de amor, os malucos, os excluídos da festa oficial
Hoje tive de recorrer ao método estético do “cut and splice”, para escrever sobre o carnaval que teima em acontecer sempre nas terças-feiras em que escrevo (rs... rs...). Por que não? O William Burroughs usou muito este procedimento de corte e montagem em seus textos, Julio Cortázar também, Sinclair Beile idem, Tristan Tzara e David Bowie ibidem. Por que não eu, que tenho de escrever todo ano sobre o “tríduo momesco”, como chamavam os cronistas antigos dos rádios e revistas? Tríduo momesco — é genial o nome.
O carnaval de hoje parece uma calamidade pública, disputada pelo narcisismo oportunista de burgueses se despindo para aparecer na TV. O carnaval foi deixando de ser dos “foliões” para ser um espetáculo para os outros; o carnaval deixou de ser vivido para ser olhado.
Não há mais músicas de carnaval — notaram? Temos de recorrer às marchinhas e aos sambas do passado. Mas quase não precisamos das canções, nesta época convulsa. Só há os corpos, as multidões enlouquecidas. Quando passam as baterias das escolas, quando uns garotos sambam no pé, ainda vislumbramos os traços de uma beleza antiga. Hoje há os corpos malhados,
excessivamente nus, montanhas de bundas se exibindo em uma metáfora de liberdade, pois ninguém tem tanta tesão assim, ninguém é tão livre assim.
Carnaval sempre foi sexo — tudo bem — mas, antes, havia uma doce inibição no ar, havia a suave caretice, uma moralidade mínima, havia clima de amor romântico nos bailes.
Dirão que sou um nostálgico “estraga-prazeres”, mas tenho a sensação de que há uma drástica mudança de rumos nesse progresso vertiginoso.
Nosso passado era feito de toscos sambinhas, de permanências coloniais; mas, mesmo nos equívocos do nosso atraso, havia alguma coisa original e frágil que a massificação enterrou.
Ainda bem que nos últimos anos voltaram os grandes blocos do asfalto, depois de um período em que só havia as escolas de samba e um grande vazio na cidade. Creio mesmo que essa volta aos blocos de rua tem a ver com a nova conexão entre as pessoas, numa espécie de rede social invisível nos céus do país.
O novo carnaval de rua tem algo de ocupação das cidades, de uma fome de democracia muito diferente dos tempos em que as primeiras damas da ditadura davam uns passinhos de samba nos camarotes da Sapucaí. Nos foliões das ruas, há quase um desejo de morrer esmagados, num fervente formigueiro onde todos se sentem um grande “um”.
Hoje, as mulheres do carnaval travam uma competição frenética de bundas e seios, e eu me pergunto: o que querem elas provar? Querem nos levar para o fundo do mar como sereias, querem destruir nossos lares, querem mostrar que o sexo sem limites resolverá os problemas do Brasil?
Talvez. No carnaval vemos que nosso Inconsciente cultural está à flor da carne. Quanto mais civilizado o país, mais fundo é o recalque. Já imaginaram a cascata de bundas na Suíça? Mas é melhor entendermos o Brasil através do carnaval do que ver a folia louca como um desvio da razão.
Temos uma outra forma de seriedade, mais alta que a gravidade do mundo anglo-saxão. Em nenhum lugar do mundo vemos isso. Onde existem essas pirâmides de corpos rebolando? No entanto, olhando bem, vemos que o nosso carnaval não aspira a nenhuma desordem, ao caos, como pode parecer a um turista ou um moralista. Talvez seja uma doença “salvadora” de que o mundo precisa. A “razão perversa” é a razão do carnaval. Não a perversão como “pecado”, mas como mímica de uma liberdade, como a busca de uma civilização “não civilizada”, de um retorno a uma animalidade perdida e, no entanto, pulsante.
O carnaval quer transformar a cultura em natureza. As mulheres que flutuam no ar dos desfiles estão além do desejo real. Conquistadas, elas seriam reais. Mas nosso desejo quer tê-las assim: inatingíveis metáforas.
O Ocidente tem o “rock”, sem dúvida. Mas, em geral, o “rock” fala de uma certa luta transgressiva, de uma pretensa revolta social (hoje, bem falsa) e não da moleza feminina do carnaval.
O carnaval é feminino; o “rock” é de homem.
No carnaval, os homens querem virar mulheres. Todos querem ser tudo: os homens querem ter seios e fecundidade e as mulheres querem ser ágeis e sedutoras máquinas de excitar pênis dançantes. Daí, a importância do travestimento no carnaval, que é um paraíso gay. O mundo macho tem muito a aprender com as mulheres no carnaval, as filhas das mucamas, das escravas lindas com o sonho das estrelas de Hollywood. Aliás, os musicais americanos são próximos do carnaval.
Quem inventou as escolas de samba na tela foi o Busby Berkeley.
O grande carnaval está muito presente no mundo dos foliões anônimos. Podemos ver nas ruas a preciosa origem do carnaval profundo. Lá, estão os desesperados, os famintos de amor, os malucos, os excluídos da festa oficial. O carnaval das ruas está longe do populismo oficial, que transforma o popular em “kitsch”.
Nas ruas, estão os blocos dos anjos de cara suja, os blocos das escrotas, o bloco dos vagabundos, dos bêbedos ornamentais, da crioulada pobre.
Essa produção de significados novos só se dá ali, no meio dos excluídos do mundo “clean”. Só os sujos são santos. Ali está a surda revolta contra o trabalho desumano e sem amor, o exorcismo da miséria, o prazer de escrachar a beleza óbvia do universo do bom desenho. Pela destruição dessa beleza “limpa”, vemos a invasão de uma poesia grotesca que atravessa os séculos desde Brueghel, Bosch, Cervantes, Rabelais, passando por Goya, Ensor e tantos outros, desaguando no barroco brasileiro do caos colorido.
Alguma coisa muito profunda está oculta na loucura desses marginais. Só ali, nas ruas sujas, estão as três raças brasileiras entrelaçadas na esperança da suruba total, de um casamento grupal doido: negros, brancos e índios dando à luz um grande bebê mestiço e gargalhante que ensine ao mundo que a vida é arte e a lógica careta é a morte.
Fonte: O Globo
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