Fala-se, no Brasil, que as coisas começam a funcionar, mesmo, somente depois do carnaval. Na economia, na política, na educação, leva-se tudo em banho-maria até o desfilar da escola de samba. Quando entra a quaresma, aí, sim, vem a pauleira. Tal preceito, porém, vale somente na cidade. Porque no campo o ritmo é diferente. Os agricultores entram no ano novo trabalhando a mil na safra. Outra folia.
Nesta altura de fevereiro/março, quando a turma da cidade se enfeita para curtir as últimas horas da grande bagunça carnavalesca, a turma da roça está com seus tratores zunindo na lavoura. Na avenida, hora da diversão; na terra, momento da colheita. Para aqueles, alegria na dança; para estes, festa no paiol. Curioso é perceber essa diferença de timing entre o campo e a cidade.
No passado não muito distante, maior ainda era a distância entre os dois mundos. Hoje em dia, progressivamente se aproximam. Primeiro, por causa do enorme êxodo populacional que esvaziou um e inchou o outro. Segundo, porque o campo está sendo "urbanizado" - estradas de asfalto, telefonia, transporte coletivo, internet, melhorias que reduzem as distâncias socioculturais. Terceiro, graças à integração produtiva que interligou a produção rural, dentro da fazenda, e a economia urbana. Antes os agricultores moravam na sede da colônia, hoje a maioria reside na cidade. Idem no caso dos trabalhadores rurais.
Mesmo considerando a moderna agroindustrialização, que de certo modo embaralha as atividades rurais com as urbanas, preservam-se algumas características únicas. Uma delas é a intensificação do trabalho em função da sazonalidade da produção agrícola. Existem períodos determinados de plantio, crescimento vegetal, florescimento e colheita dos grãos, sequência natural que determina um afã próprio. Na criação de animais, do acasalamento ao bezerro, do pintinho ao frango, do porquinho ao pernil, há que aguardar a hora da recompensa.
Na urbe, diferentemente, o trabalho humano desenrola-se com maior uniformidade, seja nas linhas de montagem industrial, seja nos balcões do comércio. Parafusos, ou roupas, fabricam-se e vendem-se todos os dias, faça chuva ou sol. Arroz ou feijão dependem do clima para vingar. Mesmo quem labuta por conta própria escolhe o momento de se ocupar. No campo, o labor conecta-se ao ciclo da natureza. E nesta época de carnaval aumenta o suadouro, pois as lavouras entram na sua fase final. Dureza.
O avanço tecnológico tem modificado o ritmo de vida do agricultor. No tempo de nossos avós havia apenas uma safra por ano. Os cereais, ou o algodão, eram plantados no início das chuvas, logo na entrada da primavera, quando o tempo esquentava. Entre março e abril realizava-se a colheita. Porém, desde que o melhoramento genético começou a se impor e a mecanização avançou, surgiram novas variedades, com ciclos de produção mais curtos, algumas precoces e outras tardias, adaptadas regionalmente. Métodos de cultivo desenvolveram-se, como o plantio direto, que executa a semeadura dispensando a aração e a gradeação dos terrenos, economizando tempo. A dissecação química, utilizada especialmente na lavoura de soja, seca rapidamente as plantas, adiantando a colheita.
Fruto dessa evolução agronômica, os produtores passaram a ter duas e, dependendo de irrigação, até três safras anuais. Variadas são as combinações produtivas, que alternam as culturas e permitem elevar o rendimento da terra, melhor remunerando o capital agrário. Mais complexa, assim, se torna a atividade agropecuária. Impulsionada pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e por órgãos estaduais de pesquisa, juntamente com as cooperativas, de forma crescente se avança também na integração lavoura-pecuária, sistema em que, após a colheita do grão, entra o pastoreio do gado. A boiada alimenta-se das sobras da lavoura, misturadas com o capim, que viça fertilizado pelo adubo remanescente no terreno. E o esterco animal eleva a matéria orgânica do solo. É incrível.
Esse fascinante mundo rural vibra num diapasão distinto da bateria das escolas de samba. Ambos aceleram as canelas nesta época do ano. Mas enquanto os foliões varam a madrugada se divertindo, os produtores rurais cedo dormem o sono profundo, acordando com as galinhas para trabalharem duro na poeira da roça. Mal conseguem, os agricultores, assistir na televisão ao desfile carnavalesco, ver as beldades e sua coreografia maravilhosa. Mesmo curiosa, a pálpebra do fazendeiro teima em fechar pelo cansaço do corpo.
Se os dois eventos pudessem ser comparados - o carnaval e a colheita da safra -, ambos os espetáculos impressionariam um júri especial isento de paixões. Nenhum povo vive sem alegria e os brasileiros transformam o grito de carnaval num momento extraordinário de liberação da energia positiva, dançando, bebericando, paquerando, esbaldando-se até exageradamente. Afora os excessos, a festa promove um encontro bizarro da modernidade com as raízes populares.
Por outro lado, nenhuma nação sobrevive sem o árduo trabalho dos produtores rurais, que retiram da terra o sustento do povo, oferecem emprego aos mais simples, zelam pela paisagem campestre, protegem os valores históricos. Por isso se assemelham, quanto à sua importância, as festas da avenida e do campo. Embora na arquibancada sobrem aplausos para o desfile, enquanto anonimamente se executa o trabalho rural, ambos são gratificantes.
Marotos, os agricultores sabem que sem o alimento que produzem ninguém teria energia para enfrentar o carnaval. Nem cachaça ou cerveja existiriam. Uma precisa da cana-de-açúcar, a outra vem do cereal. Palmas para os produtores rurais, que sambam, e suam, na colheita da safra.
Agrônomo, foi secretário de Agricultura e secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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