sábado, 15 de março de 2014

Direita e esquerda incentivavam presença militar na política, diz Serra

Fabiano Maisonnave

SÃO PAULO - "A maioria dos parlamentares está comprometida com interesses antinacionais. Entretanto, compensando a não aprovação da reforma agrária, existe uma conscientização cada vez maior dos camponeses."

O trecho acima, recuperado pelo recém-lançado livro "1964", de Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes, faz parte do discurso de cinco minutos do então presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), José Serra, no Comício da Central do Brasil.

O evento, que completa 50 anos nesta quinta-feira (13), marcou a guinada à esquerda do governo João Goulart e contribuiu para desatar o golpe militar que o tiraria da Presidência, pouco mais de duas semanas mais tarde.

À época com apenas 21 anos, Serra é o único orador vivo dos que discursaram naquele dia, entre políticos, sindicalistas e o próprio Jango.

Leia, a seguir, trechos da entrevista concedida por Serra à Folha sobre aquele momento histórico.

Paralelo entre a época do golpe e o presente
Não há paralelo. Você pode fazer análise da história do que aconteceu. Afinal de contas, são 50 anos, e há um mal-entendido do Brasil com a sua história em relação a esse episódio. Até hoje, é presente. Eu fico imaginando, em 1964, discutir as causas da Primeira Guerra Mundial, que havia sido 50 anos antes. É um passado mais do que transitado em julgado, mas, no nosso caso, continua presente, por incrível que pareça.

Mas o contexto histórico é completamente diferente, as forças em jogo também são diferentes, enfim, o processo é outro. E também não há mais a presença do fator militar, que era uma constante na história brasileira no século 20 até a redemocratização. Quer dizer, dominou o século 20. E hoje a presença militar não existe na política.

Presença militar que era incentivada tanto pela direita como pela esquerda. Eu, aliás, muito cedo, quando me mudei para o Rio, em meados de 1963, me incomodava um pouco isso. Sempre achei que, se você politiza o militar, eles acabam arbitrando.

O comício e o golpe
Eu acho que o comício acelerou a preparação do golpe. Agora, qual foi o principal efeito nesse ponto de vista? Foi a Marcha da Família, no dia 19 de março, em São Paulo. A marcha foi um ingrediente essencial porque deu confiança de que havia respaldo popular para o golpe. Dizem que a marcha tinha 500 mil, como dizem que o comício tinha 200 mil.

Digamos que cada um teve metade disso: é muita gente. Só a mobilização da classe média alta não explica. Não havia só 250 mil, 300 mil pessoas de alta classe média pra desfilar na rua. A classe média baixa também saiu pra desfilar.

Discurso como presidente da UNE
Por causa do comício da Cinelândia [em agosto de 1963, quando Serra criticou Jango], Jango estava receoso do meu discurso naquele dia. O Hércules Corrêa, do Partidão [PCB], estava dirigindo o comício todo e me falou nas tratativas: "Vamos apresentar você para a multidão, você diz 'boa noite' e pronto". Eu disse que sim. Mas, na hora, comecei a falar, e era impossível me interromper na frente da multidão, até porque era um discurso muito aplaudido. Então esses cinco minutos foram assim.

Eu estava convencido de que viria o golpe. Não confiava em que o esquema militar do Jango pudesse frustrá-lo nem achava que as forças populares teriam condições de resistir. Isso é o que tinha dentro do meu pensamento e me dominava. Claro que fiz um discurso pra levantar, e não pra puxar pra baixo. Mas a questão básica era da mobilização antigolpe. A ênfase principal no discurso foi que havia um golpe em andamento, que tínhamos de nos mobilizar.

Eu também saudei uma medida do Jango referente às universidades. A grande batalha que a UNE tinha era com relação à ampliação do número de vagas das universidades. Tínhamos menos de 1% da população em idade universitária estudando no ensino superior. Então a grande batalha era para turbinar isso. Era uma grande bandeira que eu mesmo levei ao Jango logo que tomei posse. E o Jango já tinha avançado nisso, tanto que aumentou o número de vagas. Eles caminhavam para dobrar o número de estudantes no primeiro ano.

Decreto da reforma agrária
Durante a tarde, fui chamado pra uma reunião na Supra (Superintendência de Política Agrária) com o seu presidente, João Pinheiro Neto. O Jango ia anunciar o decreto à noite e havia um impasse. O que era o decreto? Permitia desapropriar terras ao lado de estradas federais. O problema era a distância em relação à estrada. Havia duas distâncias. E eles queriam saber a nossa opinião. O CGT (Comando Geral dos Trabalhadores) estava lá, eu não me lembro quem mais.

Obviamente, eu optei distância maior, pela ampliação. Mas era um assunto sobre o qual não tínhamos a menor ideia. Essa medida da Supra foi extremamente improvisada. O decreto tinha várias ressalvas e exceções. Eu disse: "Aqui, tem dois problemas. São tantas ressalvas, como isso vai ser implantado? Segundo, e onde não tem estrada federal?" Aí alguém ponderou que, politicamente, o decreto era importante.

Tensão no comício
A primeira coisa que me impressionou no comício era que toda a segurança, todo o aparato era militar. Sempre era muito complicado na Guanabara porque a polícia era do [governador oposicionista Carlos] Lacerda. E era truculenta.

O CGT, nesse dia, eles colocaram o Oswaldo Pacheco Ele era marítimo, estivador. Era o mais carismático do CGT. E era impressionante, um homem de grande carisma. Como havia receio de um atentado contra o Jango de algum prédio lá da Central do Brasil, ele ficou do lado do Jango, pra ser anteparo.

Ficaram a [mulher de Jango,] Maria Thereza, que estava deslumbrante, o Jango e ele. Do meu ângulo, eu via mais de perto da Maria Thereza, e eles estavam um pouco acima. E quem fazia o discurso ficava um pouco mais alto.

E estava lá o Pacheco de proteção do Jango. Está em todas as fotos. Pouca gente deve saber disso, mas o que passou para o país era que o CGT estava tutelando o Jango, quando na verdade o estava protegendo. Acho que foi o melhor discurso que o Jango fez na vida. Inclusive com improviso, o que não é fácil.

Jango e as esquerdas
A Frente de Mobilização Popular (FMP) hoje serve colocar todo mundo junto. Mas, na verdade, era só para reuniões, não era uma coisa orgânica. A composição era variável, mas tinha sempre a UNE, o CGT, o [então deputado gaúcho, Leonel] Brizola e a Frente Parlamentar Nacionalista, com gente de todos os partidos, até da UDN (União Democrática Nacional, de direita).

O Jango, a partir de janeiro, pendeu muito mais para a linha da FMP. Não fez mudanças no ministério, mas resolveu partir pra diante na estratégia de pressionar Congresso, a bandeira das reformas e tudo o mais. O comício veio no contexto disso. Agora, a proximidade maior dele nesse período era com a linha do PCB (Partido Comunista Brasileira), que era também o CGT. Dentro da FMP, o Jango se aproximou muito mais da linha do Partidão.

Havia uma disputa implícita com o pessoal do Brizola. A UNE era mais neutra, embora houvesse Partidão na UNE. Mas era uma entidade estudantil, não era alinhada. Em geral, na FMP, havia esse tipo de polarização. Mas não havia sempre briga, era uma coisa de tendência. Nessa mesma época, prosperava a Frente Progressista do San Tiago Dantas. Ele era moderado para o contexto da época, até porque pressupunha a participação do centro, do PSD e de outras forças para segurar o processo. Nós não combatemos, mas o Partidão rejeitou a proposta do San Tiago.

Por trás de tudo, havia uma inflação que, em janeiro e fevereiro, já era de mais de 7% ao mês, o que, anualizado, dava mais de 100%. A situação sempre ameaça escapar do controle quando tem isso. E o Jango radicalizava no sentido de que, para deter a inflação, precisava das reformas. Na verdade, eram níveis diferentes, porque uma inflação alta não se combate no curto prazo com reforma agrária.

Fonte: Folha Online

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