Boatos se transformaram, de repente, em realidade cruel. Governador preso. Sindicatos invadidos. Líderes populares eram levados aos quartéis. Encontrei-me com Gilvan e fomos para casa juntos. Foi a última noite que dormimos em nossa casa e junto com nosso então único filho. Arraes fora deposto e preso.
Nesse dia, fatídico para nossas vidas e especialmente para a história do nosso país, 1º de abril de 1964, era meu aniversário. Na casa onde depois me escondi com Gilvan, minha mãe mandou-me um bolo. Começou aí nossa peregrinação por algumas casas. Era prudente. Muita gente fazia o mesmo. Diante da dura realidade, minha mãe e minha sogra tomaram a iniciativa que cabia então: promover a liquidação do que fora "nosso lar". Gilvan Filho, com apenas 18 meses, junto com seus pertences, foi para a casa de minha mãe. O resto dos móveis para a casa de minha sogra.
Nossos livros, o único patrimônio de valor que realmente possuíamos, uma biblioteca mediana com inúmeros volumes de filosofia, história, literatura, obra completa de Graciliano, Machado, Balzac, Jorge Amado, Aragon, entre tantos. Tudo, devidamente encadernado, foi parar num alagado. Pagaram um carroceiro, que, em três viagens de nossa casa até à beira do Rio conseguiu dar fim àquela preciosa papelada que fizera nossa cabeça de jovens progressistas.
A única coleção salva, por acaso, porque se encontrava com meu pai, foi Machado de Assis, que um amigo, misteriosamente, nos devolveu quando retornamos do exílio.
Quando fomos presos, no dia 2 de maio, um mês depois do golpe, muitos destes volumes, enlameados e inaproveitáveis, já se encontravam recolhidos à delegacia política. Alguém viu o trabalho do carroceiro e informou à polícia. Olhei de soslaio para nossa desfigurada biblioteca enlameada dentro da sala do delegado e não consegui conter o choro. Metido a literato, um delegado que chegou à noite, manuseou um volume enegrecido de Jean Christophe, de Romain Rolland e falou pra mim com ar compungido: que pena!
Eram muitos os policiais que invadiram nossa "casa-esconderijo". Um chalé amplo, rodeado de terraços pertencente a uma tia de Gilvan, que, com muita bonomia e correndo risco, se dignou a nos guardar lá por alguns dias.
Estávamos na sala vendo e ouvindo Cid Sampaio falar na televisão quando o gato que até então estivera quieto, pulou de um extremo a outro da sala. Então, pela grade da porta da frente, se assomou um cano de metralhadora. Vários outros apareceram nas demais portas e janelas. Parecia até que iam prender a quadrilha de Lampião.
Graziela Melo, Crônicas, contos e poemas, p. 88-89. Abaré Editorial / Fundação Astrojildo Pereira, 2008.
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