• Cidadãos mais críticos são um legado da Copa
- Valor Econômico
Enfim, começou a Copa do Mundo. Talvez como nunca antes na história deste país, o torneio mundial de futebol acendeu paixões. Só que, desta feita, nem tanto as paixões futebolísticas, que andaram ofuscadas, e sim paixões políticas. Certamente, desde 1970 não testemunhamos uma Copa do Mundo que tenha sido tão fortemente politizada no Brasil - embora desta vez, (felizmente) de forma muito distinta. Talvez outro torneio que tenha sido tão politizado como este, após a Copa de 1970, tenha sido o sediado na Argentina dos generais, em 1978 - novamente numa forma de politização nada invejável. Desta vez, o que temos é uma politização democrática, com as manifestações das ruas, da opinião pública midiática e da subopinião pública das redes sociais, as críticas das oposições e a cobrança pelo conjunto dos cidadãos.
Creio que a atual politização confirma expectativa que expressei numa coluna de janeiro de 2010 (www.valor.com.br/arquivo/802629/copa-olimpiada-e-os-costumes), contra os céticos e pessimistas, de que a Copa e a Olimpíada representariam desafios úteis para aumentar a pressão social sobre as autoridades políticas e esportivas, no sentido de que melhorassem sua conduta. E, de fato, o que mais temos visto desde junho de 2013 são manifestações críticas à realização da Copa do Mundo e aos seus gastos. Algumas, exageradamente.
O recrudescimento das manifestações contrárias ou, ao menos, críticas ao torneio mundial de futebol corresponde a três momentos importantes do calendário: as próprias manifestações de junho, que tiveram o condão de destampar um caldeirão de insatisfações difusas das mais diversas naturezas; a conclusão atrasada ou incompleta das obras para o evento; e o aquecimento do debate eleitoral, com as consequentes cobranças aos governantes.
Contudo, para além desse efeito de calendário, há uma questão específica de conteúdo, que diz respeito aos gastos governamentais com o evento. Este é um aspecto que pode ser considerado de duas perspectivas: (1) o montante do gasto e (2) a qualidade do gasto. Quanto ao primeiro ponto, os volumes dispendidos com estádios na forma de gastos diretos, empréstimos ou subsídios são mesmo bastante alentados - R$ 8 bilhões. Contudo, é falsa a dicotomia que se coloca entre o uso de tais recursos para a construção ou reforma de arenas e os investimentos que deveriam ser feitos em saúde e educação. Como apontou a 'Folha de S. Paulo' numa reportagem de 23 de maio, mesmo a totalidade dos gastos feitos com a Copa para além dos estádios, que envolve investimentos em infraestrutura urbana, aeroportuária, formação de pessoal etc., não chega a um mês dos gastos feitos em educação. Assim, pode-se concluir que mesmo que todos os investimentos feitos na Copa fossem destinados à educação, a situação não se alteraria em praticamente nada.
Ademais, como apontou o Valor de segunda-feira, numa reportagem de José João Oliveira, apesar os percalços, um legado efetivamente fica - e ele precisa ser computado ao se fazer o balanço dos gastos já mencionados. A mais emblemática declaração transcrita na matéria é do presidente do Sindicato Nacional de Arquitetura e Engenharia, José Roberto Bernasconi: "Só o fato de ter forçado o governo a reconhecer que era preciso abrir os aeroportos à iniciativa privada já foi um legado da Copa". O notável dessa observação é que ela aponta para um tipo de herança que não é tão palpável como estádios confortáveis, transporte mais eficiente ou uma estrutura turística mais robusta. Ele concerne a mudanças de comportamento e suas implicações para formas de gestão e políticas públicas melhores.
Ao explicitar o mau uso do dinheiro público na construção de estádios excessivamente caros e grandes, fadados a se converterem em elefantes brancos, a Copa ilustrou de forma didática um modo de gerir a coisa pública que é coisa antiga e que continuaria a ocorrer mesmo sem o torneio. Por vezes, trata-se de gastar muito mais do que seria razoável em algo que não terá uso, como no perdulário estádio de Brasília, o terceiro mais caro do mundo. No campeonato regional de 2013, o público total dos quatro times da Capital com maior torcida (Brasiliense, Gama, Sobradinho e Brasília) chegou a 70.020 pessoas - menos do que os 71.000 lugares do Mané Garrincha. E isso porque entrou na conta o público da inauguração do novo estádio, com ingressos a R$ 1 numa final de campeonato. Resultado: 22 mil torcedores presentes. Haja shows para dar uso ao espaço...
Outro exemplo de escolha altamente questionável é o estádio de Manaus, cuja capacidade supera o público total do último campeonato estadual em 4.500 lugares. Curiosamente, no vizinho amazônico, o Pará, o Clube do Remo e o Paysandu repetidamente levaram ao Mangueirão públicos superiores aos 15, 20 ou 30 mil pagantes durante os dois últimos campeonatos estaduais. Se era para investir dinheiro público num estádio amazônico, faria mais sentido que fosse no Pará.
Por outro lado, a cobertura excessivamente enviesada sobre os investimentos da Copa também gera distorções profundas de percepção e acirra os ânimos. Exemplo disto foi uma matéria do "Correio Braziliense", de 11 de junho, intitulada: "Despejados para construção de Itaquerão, moradores não têm água, luz ou TV". Ao se ler isto, tem-se a impressão de que se despejou gente que morava no terreno onde foi construído o estádio, ou que houve desapropriações selvagens para obras viárias. Na realidade, o que houve foi um aumento no valor dos alugueis da região, impactados com a valorização imobiliária propiciada pela construção da Arena Corinthians. Com isto, moradores da região não tinham mais como arcar com os aluguéis.
O problema de distorções informativas como esta é que fazem supor que é nefasto qualquer investimento que leve à valorização de uma região. Na realidade, o que se requer são políticas públicas que corrijam externalidades negativas do desenvolvimento. Senão, abdicaríamos de tentar melhorar nossas cidades pois isso, afinal, aumenta os aluguéis.
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
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