• Vivemos numa nação esfrangalhada e de precária cultura política, em que a difamação substitui a informação no debate público, diz historiador
- Aliás / O Estado de S. Paulo
Dia de eleição, dia de festa cívica. Festa? O que há a comemorar nesta campanha eleitoral marcada por ódios desmedidos, que tem trazido à tona o que há de pior em nossos precários costumes ditos “republicanos”? Afinal, tempo de perguntar: quem somos nós e o que valemos enquanto povo, como indagava Mário de Andrade? Não éramos “cordiais”?
Os mais otimistas patrioteiros dirão, como sempre, que, apesar de tudo, vamos bem, “o Brasil melhorou”. Que neste 5 de outubro coroa-se neste País um processo vitorioso de afirmação da cidadania, que nossas instituições funcionam maravilhosamente e que podemos celebrar uma “tradição eminentemente republicana”, em que o voto livre - embora obrigatório -, principal garantia da democracia, permite que a sociedade civil defina os rumos da Nação. Não mencionam que o contexto desta eleição é dos mais turbulentos de nossa história.
Por seu lado, os mais pessimistas, ou, quando menos, céticos, farão notar que a República se encontra esfrangalhada, que a ideia mesma de Nação vem sendo apagada na voragem da corrupção, da costumeira impunidade, do compadrio, na maré alta do capitalismo selvagem e na maré vazante da incultura generalizada - incluída aqui a incultura política, resultado do esvaziamento progressivo, metódico e programado daquele que deveria ser um repertório para um País moderno, baseado em informação histórico-crítica. Informação, não difamação. Pois “sociedade civil” tornou-se no Brasil um conceito que mal saiu dos manuais para a realidade concreta e foi substituído na prática por termos como patrimonialismo, familismo, populismo, racismo.
O fato é que se assiste hoje no País a fenômeno semelhante ao que o historiador português Vitorino Magalhães Godinho, recentemente falecido, observou para Portugal há 20 anos: assistimos ao naufrágio da Nação no horizonte do marketing. Ou, como fez notar em 2000 o cáustico jurista historiador Raymundo Faoro, em sua obra esclarecedora Os Donos do Poder, sobre a formação do patronato político brasileiro: “Como eu acho que aqui a história, pelo menos a história da democracia, ainda não começou, não é muito difícil prever coisas, prever que daqui a pouco as coisas estarão como estão hoje (…)Essa globalização é o papel que estão fazendo os países subdesenvolvidos, o papel de otários. O Brasil está desempenhando esse papel impecavelmente, é um otário para ninguém botar defeitos, um país otário”.
Teremos mudado de 2000 para cá? Teremos melhorado nestes anos todos?
O tom dominante destas eleições é dado pelo ódio. Parafraseando um histriônico e talentoso político envolvido no mensalão, os embates atuais entre os candidatos parecem despertar sentimentos primitivos em boa parcela dos eleitores, como “nunca antes neste País”. Talvez na República Velha (1889-1930) tenha ocorrido algo semelhante, quando os líderes da oligarquia urbana e rural alugavam os músculos dos tristemente famosos “capoeiras” para darem sovas e atacarem em tocaias os adversários na calada da noite.
Permanece o habitus, embora com tecnologia moderna: a figura nova é a dos “jagunços eletrônicos” de aluguel, que, escondidos no anonimato de bunkers criados para a “guerra suja” e bem pagos, operam sorrateiramente na desconstrução de candidaturas alheias. Suas mentiras e aleivosias infinitamente repetidas vão se tornando “verdades”, e controlam, sob a batuta de marqueteiros, o que antes se denominava “opinião pública” - os mesmos “profissionais” que inventaram as tais classes A, B, C, D e E, apagando o pouco que se aprendeu de sociologia e história em nossas escolas e partidos.
Nesse processo, marqueteiros de aluguel substituíram figuras públicas responsáveis, de projeção nacional e internacional, que um dia, neste País, denominamos estadistas. A cultura política brasileira regrediu para um estágio pré-sociológico. Mais um passo atrás e será válida a cruel definição circulada por alguns críticos escarmentados: “A principal contribuição brasileira para a vida política é a tocaia”.
Mas o ódio na esfera pública, como na privada, não vem de agora. A história do Brasil é cruenta, dizia o notável historiador Capistrano de Abreu, falando de nosso povo “capado, sangrado e ressangrado” desde os tempos coloniais. Um de seus discípulos, José Honório Rodrigues, aprofundou a interpretação do mestre ao observar que, desde o início da escravidão nestas partes do mundo, houve levantes e insurreições de escravos africanos quase todos os anos, nos diferentes quadrantes do território, até a tardia Abolição de 1888, e mesmo um pouco depois (quilombolas ainda existem). E mais: que as elites souberam praticar e adotar a metodologia da “arte finória” (sic) da conciliação, sobretudo a partir de 1850 e, por que não dizer?, até os dias de hoje. A obra de José Honório, Conciliação e Reforma, é de uma atualidade preocupante.
Como jamais em nossa história ocorreu algo parecido com uma profunda revolução burguesa para valer, nem muito menos proletária ou camponesa - ou, quando menos, uma reforma política ou agrária ou educacional -, os quadros político-institucionais e mentais ainda guardam remanescências do período colonial, imperial e também republicano superpostos, numa mixagem tropical perversa.
Em perspectiva histórica, citem-se o mandonismo colonial com seus brutais capitães do mato, coronelismo imperial com jagunços bem armados, as variadas formas de organização familiar e cultural com traços da casa-grande (e da senzala), fenômenos sociais que delineiam e atualizam o que se poderia denominar capitalismo senzaleiro, por vezes disfarçado em modos de vida, atitudes e (digamos) “estilo colonial” ou “imperial” de mau gosto. Em poucas palavras, um sistema econômico-social em que ideias de cidadania e democracia efetiva, com altos índices de educação, saúde e habitação passam longe, bem longe daqui, além-Atlântico.
Nessa perspectiva, a aceitação do outro, do diferente, do contrário, do contraditório tornou-se difícil neste peculiaríssimo e descalibrado sistema sociocultural, quase impossível. Daí compreender-se por que o autoritarismo neopopulista e o estatismo “desinformado” do atual governo encontre sua contrapartida na busca de formas de efetiva participação sonhática, não isenta de tropeços; dois universos distintos entremeados pelo esforço de um terceiro personagem em situar-se, um tanto tardiamente, como líder de uma sociedade civil moderna ainda inexistente. Pois falta o básico para a sustentação dessa sociedade civil: uma burguesia moderna, com lideranças avançadas, implementadoras de propostas e projetos mobilizadores; burguesia que saiba sobretudo conversar com as outras classes sociais, em especial com o proletariado, conceito como tantos outros em desuso, como também a antiga expressão “luta de classes”, apagada alegremente dos textos e debates.
O ódio, porém, não se deve apenas ao mau humor de algumas pessoas, ou ao mau caráter de outras. As regras da sociedade civil moderna, sabe-se, foram estabelecidas ao longo de intensas lutas sociais, políticas e ideológico-culturais para que os espaços públicos, os direitos civis, nossa liberdade de opinião e expressão, o dissenso fossem adotados como pedra de toque da democracia, aqui e alhures.
Nesta terra em que esse conceito precisa ser adjetivado (democracia relativa, democracia liberal, democracia de participação, etc), os exercícios de práticas democráticas deveriam ser dirigidos antes à ruptura histórica do modelo autocrático-burguês vigente, que não se confunde com o modelo democrático-burguês liberal. Naquele, superpõem-se e se combinam valores e métodos do coronelismo familista antigo (Sarney, Lobão e afins), do neocoronelismo populista urbano (Maluf, etc), e do neopopulismo dito de esquerda (Lula, Menegueli e outros). A força desse modelo desmobilizador da cidadania de resto pode ser verificada na escassez tenebrosa de votos obtidos pelos ínfimos partidos da esquerda, cinco deles dissidências do PT.
À falta de projetos, recorre-se para rebater críticas à violência verbal, ao encobrimento das falcatruas, à hegemonia dos apaniguados tacanhos, às “razões de Estado” e à fantasia de números falsos para uma população que permanece com baixíssimo índice de escolaridade, formação e informação.
Não se foge, mudados os traços gerais das instituições, aos padrões de violência dos tempos de D. Maria I, da execução de Tiradentes e dos revolucionários baianos de 1798 (os “Alfaiates”), dos republicanos massacrados em 1817, 1824 (inclusive do Frei Caneca), 1831, 1848 e assim por diante.
O sistema de poder indesmontado, reforçado, aperfeiçoou-se e até se sofisticou, mostrando também sua força e violência na guerra contra o Paraguai, quando, ao final, o Exército brasileiro esmagou um triste Exército composto por adolescentes. Depois, a repressão odiosa ao movimento de Canudos, liderado por Antônio Conselheiro, conforme se lê na obra magistral de Euclides da Cunha Os Sertões, também mostraria como aquela república lidava com a divergência popular. O mesmo se diga quanto à repressão aos movimentos escravistas no século 19 e, em seguida, às insurreições republicanas no século 20 - aplastadas por seus mandatários, inclusive Getúlio Vargas, o “pai dos pobres”, mas sobretudo o pai do populismo que se desdobra até os dias atuais.
Tal violência odienta foi reiterada em episódios como o de Lampião, que teve a cabeça decepada, bem como a de Maria Bonita e de seus companheiros, durante um certo tempo exibidas tetricamente em museu e ilustradas em livros didáticos. Depois se manifestou na violência indescritível contra as lideranças das Ligas Camponesas, algumas arrastadas pelos pátios militares com coleiras, ou massacradas. Cabeças decepadas, esquartejamento como o de Tiradentes e outros permitem pensar que o ódio não é fenômeno histórico recente neste País (como alhures), e se torna mais visível em contextos em que a sociedade civil democrática ainda não logrou implantar e impor regras de convivência civilizada, como no caso das degolas de prisioneiros no Maranhão ou Curitiba, para citar apenas episódios mais recentes.
Cabeças cortadas em presídios lotados, arrastões, queimas de ônibus, metrôs parcos e conduções apinhadas de pessoas tratadas como gado, mais a violência verbal de “capoeiras eletrônicos” boçais, mais a incompetência governamental, criam o péssimo clima sociocultural hoje vivido no País, agravado depois de junho de 2013. Situações desumanas vividas no cotidiano das pessoas comuns indicam que, além da carência assustadora em todos os setores de líderes à altura dos desafios brasileiros, o País se descobre numa encruzilhada decisiva. Como bem formulou tal impasse o argentino Domingo Faustino Sarmiento em seu livro famoso Facundo, ou Civilização e Barbárie. O momento atual é de decisões.
*Carlos Guilherme Mota é historiador, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, professor emérito da FFLCH-USP e autor, entre outros livros, de Ideologia da Cultura Brasileira (Editora 34)
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