A pensão onde tínhamos nosso quarto, na Rua San Ignácio, fora, outrora, residência de Balmaceda, ex-presidente chileno de 1886 a 1891. Derrubado do poder por uma violenta guerra civil, asilou-se na Embaixada da Argentina, suicidando-se um dia após expirar o prazo legal de seu mandato. Certa ocasião a dona da pensão contou-me um fato curioso. Batera-lhe à porta uma senhora idosa elegantemente vestida e pedira-lhe a gentileza de deixá-la correr a casa. Junto com a dona da pensão olhou um a um todos os cômodos. Depois, com os olhos cheios de lágrimas, que era neta de Balmaceda. Há muito vivia nos Estados Unidos e queria rever a casa onde passara a infância.
Era uma velha casa de três andares, cuja estrutura de mais de um século, permanecia original. Teto alto, portas largas e altas também, piso todo em madeira corrida, quartos grandes e cozinha muito espaçosa. Nos três andares, vários quartos que a arrendatária sublocava. Só no nosso primeiro andar, eram seis. O banheiro do corredor era coletivo. Era na banheira antiga e gigantesca que eu lavava nossas roupas. As paredes velhas pareciam de barro e madeira e quando havia tremor de terra, balançavam como se fossem soltas e deixavam cair muita areia. Da janela de vidro do nosso quarto podíamos ver o sol e a luta. A paisagem eram os velhos telhados espanhóis dessa parte antiga de Santiago. Aí, nesse endereço de Calle San Ignácio, 119, 1 piso, é que recebíamos notícias do Brasil. Cartas da minha mãe, do meu pai, jornais brasileiros que nos mandavam Jornal do Brasil, Diário de Pernambuco, etc.
O governo da Unidade Popular sucedera o da Democracia Cristã. Eleito por uma coligação de partidos de esquerda, Salvador Allende conseguira 36% dos votos sufragados. Sem maioria absoluta, teve que ser referendado pelo Congresso, como exigia a Constituição Chilena.
Passados dois anos de governo, sentia-se no ar a polarização crescente das distintas forças da sociedade. A inequívoca opção de Allende era a via democrática para o socialismo. Depois da estatização de algumas indústrias, a direita entricheirou-se. Começaram a acontecer atos de hostilidade deliberada ao Governo. Gêneros alimentícios de primeira necessidade desapareciam do comércio. Arroz, açúcar, farinha de trigo que é produto básico para os chilenos, devido ao seu hábito de fazer pão em casa, se transformaram, da noite para o dia, em artigos de altíssimo luxo. Para conseguir uma simples caixa de cigarros em uma banca de jornal eu era obrigada a comprar uma, duas e até três revistas de Tio Patinhas, Pato Donald e Super Pateta. Ou não levaria o cigarro.
No frio do inverno de três, quatro graus, faltava querosene para as estufas e muitas e muitas vezes, em dia de greve de ônibus e de taxi que passaram a ser uma constante no cotidiano de todos nós, tínhamos que ir longe, fazer longas horas de fila, para conseguir um pouco de querosene para poder dormir com o quarto aquecido. Na falta absoluta deste, até carvão servia. Quantas vezes voltei para casa, com cara de palhaço toda suja de tisna, carregando no ombro sacos de carvão que nos aqueceriam o sono das noites de dois, três e até quatro graus. Se não, teríamos todos de dormir de toca, suéter, botas e até capote.
Passei a percorrer diariamente as ruas de Santiago. Além do fato de que herdara o hábito andarilho de meu pai, andar a pé pelas ruas de Santiago, era uma das coisas mais prazerosas que se podia fazer naqueles longos dias de exílio. A rua Huérfanos, comprida e linda, com quarteirões inteiros de casinhas espanholas, grudadas umas nas outras, com clarabóias e pequenos jardins internos, bem no meio da sala de jantar. A calle Teatinos, Bandera, Almada. Aí tinha um café que costumávamos freqüentar. Além de servir um excelente expresso, esse local era uma espécie de miniatura política da América Latina. Geográfica também. Pelos grupos humanos que se apinhavam no balcão e pela musicalidade diversa do sotaque de espanhol falado em cada um dos países do continente, desde os próprios hospedeiros chilenos, até bolivianos, uruguaios, brasileiros, argentinos e tantos outros exilados dos países latino americanos que freqüentavam o local para tomar café e discutirem uns com os outros, a possível e desejada queda das ditaduras de seus respectivos países e a vida política no mundo de então. Aí também se vendia café em pó embalado com um emblema verde e amarelo do Brasil. Nunca consegui aqui um café tão gostoso como aquele café brasileiro de La Calle Almada!
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