- O Estado de S. Paulo
As grandes tragédias da humanidade se movem em torno de um eixo com quatro elementos: os fatos, as incertezas, o acaso e a incompetência. É evidente a associação deles nos acontecimentos relevantes da história política do Brasil, por exemplo.
Na Revolução de 30, os quatro elementos estiveram presentes na incompetência política de Washington Luiz no gerenciamento da base política, na ruptura da política café com leite (fato), na incerteza das adesões ao movimento e no acaso do assassinato de João Pessoa.
O assassinato de João Pessoa foi o elemento detonador da ampla indignação que derrubou o regime e levou Getúlio Vargas ao poder. Vale lembrar que Pessoa foi assassinado por questões paroquiais, que pouco se relacionavam com o ambiente político federal.
No impeachment de Fernando Collor tínhamos a certeza da corrupção do governo (fato), a ausência de uma base política (incompetência), o acaso da delação do irmão Pedro e a incerteza do processo de impeachment. A combinação de tudo resultou no afastamento do presidente do governo. Desses dois episódios marcantes pode derivar uma analogia com o momento presente. Na conjuntura atual temos, simultaneamente, a presença dos quatro elementos mencionados. E de forma destacada.
Começamos pelos fatos. São abundantes as evidências e provas de muitos dos “malfeitos” no âmbito fiscal, gerencial e político. A cada dia, como numa triste procissão, nossa desgraça pública é revelada em alas. São fatos do passado e do presente numa trágica combinação que nos afastou décadas de um futuro melhor. Mas ainda falta o fato concreto, de evidência inequívoca, de envolvimento da Presidência com os malfeitos. Estamos, ainda, no campo das especulações.
A incompetência está presente em posição de destaque onde aparece a incapacidade – coibir a corrupção, o desperdício de dinheiro público e a destruição de valor da Petrobrás. Outra vertente foi a demolição da credibilidade fiscal, com o aumento irresponsável de gastos, que não conseguiram impedir o País de cair em profunda recessão. O terceiro exemplo é a histórica incompetência política do primeiro mandato de Dilma, que afetou dramaticamente o funcionamento do presidencialismo de coalizão. Tal incompetência prosseguiu no novo mandato, fortalecendo as dissidências e tumultuando o ambiente político.
O acaso está no início da Operação Lava Jato, que esbarrou num doleiro e fez a casa cair para o sistema capitalista brasileiro. Tudo começou quando a Polícia Rodoviária Federal, numa batida de rotina em março de 2013, apreendeu um caminhão perto de Araraquara. O veículo tinha um carregamento de mais de 600 quilos de cocaína. O episódio foi a ponta do fio que levou ao novelo da Operação Lava Jato, o maior escândalo de corrupção do mundo moderno.
O quarto elemento é a incerteza. Neste quesito temos um imenso desfile de questões. Por exemplo, as investigações em Portugal que resultaram na prisão de um ex-primeiro-ministro e um banqueiro podem respingar no Brasil? As delações de três ex-diretores da Petrobrás, além das revelações de Paulo Roberto Costa e Pedro Barusco, vão ampliar o universo de investigados?
Os empreiteiros presos vão engordar o cordão de delatores? As novas delações vão expandir o número de envolvidos?
São incertezas intensas demais para permitir uma clara delimitação da crise política. Para piorar, as incertezas têm um forte viés negativo e apontam para um quadro de agravamento. Estamos longe do fim da crise política e profundamente limitados pela incerteza dos acontecimentos. O que remete à necessidade de elevada competência política e desprendimento dos principais atores políticos.
Fica claro que, pelo tamanho e pela diversidade da crise, o governo não tem a menor condição de resolvê-la sem descer do salto alto e buscar o entendimento com todas as forças políticas relevantes e com as principais instituições. O governo deve se reinventar para conseguir – o que é incerto – chegar a seu termo. Não há, ainda, essa percepção. Desde 2013 Dilma começou a perder o controle da agenda e nunca mais conseguiu retomá-la. Ela é passageira num trem desgovernado.
A Agenda Brasil, posta por Renan Calheiros e turbinada por Joaquim Levy, é uma boa iniciativa. Mas que se deve caracterizar pela efetividade, e não pela extensão das boas intenções. Pelo menos ambos demonstraram estar dispostos a atuar. Ao contrário do setor privado, que continua à deriva, e da oposição, que parece não ter muito o que dizer a não ser repetir o que todo mundo sabe. A agenda Calheiros-Levy teve o condão de ocupar os espaços políticos e reduzir o clima de “sinistrose” que abalava o País.
No entanto, tudo continua em aberto. O quarto elemento continua dando as cartas. Tudo seria previsível se o mundo político não estivesse, como está, andando sem rumo em campo minado sem detector e sem mapa. Tal circunstância reforça, ainda mais, a necessidade de as instituições atuarem presentes e com muita responsabilidade. Não cabem declarações mal colocadas, como a do presidente da CUT, Vagner Freitas, sobre partidários da presidente estarem “entrincheirados e com armas na mão”, nem mesmo impulsionar o processo de impeachment sem bases concretas. Devemos ter, sobretudo, muita responsabilidade.
Como disse o general Carl Clausewitz, “o acaso e a incerteza são os dois elementos mais comuns e mais importantes numa guerra”. Nossos estrategistas devem ter em mente que não estão no controle e que Brasília continuará a funcionar, por um bom tempo, fortemente influenciada pelos ritmos ditados pelas investigações de Curitiba, que mandam uma mensagem clara: estes são tempos de incerteza.
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*Murillo de Aragão é advogado, consultor, mestre em Ciência Política, doutor pela UnB e autor do livro 'Reforma Política - O Debate Inadiável' (Civilização Brasileira, 2014)
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