domingo, 4 de outubro de 2015

Um poeta corsário

• Pier Paolo Pasolini tem seus poemas traduzidos em novo livro

• Textos do cineasta italiano saem em publicação bilíngüe

Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S. Paulo

Os 40 anos de morte do poeta, cineasta, ensaísta e pintor italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975), assassinado na praia de Ostia (perto de Roma) no dia 2 de novembro de 1975, serão lembrados com uma jornada na Biblioteca Mário de Andrade a partir do dia 8, quando será lançado Poemas: Pier Paolo Pasolini, edição bilíngue da Cosac Naify que reúne excertos dos sete livros de poesia publicados em vida pelo escritor, além de textos que apareceram em obras ensaísticas já publicadas aqui, entre ele Empirismo Herético e Escritos Corsários. A tradução é de um especialista na obra de Pasolini, o professor de literatura italiana Maurício Santana Dias, que levou um ano apurando sua versão dos primeiros poemas de juventude, escritos em dialeto friulano de Casarsa, como os do livro A Melhor Juventude (La Meglio Gioventù, 1954) e os derradeiros, reunidos no volume (A Nova Juventude (La Nuova Gioventù, 1975), publicado no ano da morte do autor.

A Jornada Pier Paolo Pasolini, que conta na abertura com a participação do crítico literário romano Alfonso Berardinelli, autor do prefácio do livro, reúne brasileiros como José Miguel Wisnik e Maria Betânia Amoroso, entre outros, para discutir a produção do diretor de Teorema em vários campos, da filologia à religião, passando pela política e pelo sexo. Homossexual que não se integrou ao movimento gay, mas afirmou sua condição desde os primeiros poemas, Pasolini causou escândalo por seu comportamento insubmisso, sendo, inclusive, expulso do Partido Comunista italiano após ser acusado de corrupção de menores e atos obscenos em lugar público.

O choque sempre esteve ligado à figura de Pasolini, dos primeiros poemas ao último filme, Saló (1975), transposição de Os 120 Dias de Sodoma, do Marquês de Sade, com cenas de tortura realistas transferidas para a Itália fascista, em 1944. Seu testamento cinematográfico provocou escândalo onde foi exibido. Em contrapartida, seus poemas, mesmo tratando de temas igualmente polêmicos, parecem longas meditações registradas num diário, em que a modernidade de Pasolini dialoga com formas poéticas arcaicas, como a "terza-rima" de Dante, sua referência constante.

Como observa Berardinelli, o caráter híbrido da produção intelectual de Pasolini fez dele "o exemplo mais vistoso de intelectual engajado: um intelectual herético que punha a si mesmo e a sua experiência no centro de todo discurso público". Filho de um militar de carreira e de uma professora do ensino fundamental, Pasolini, nascido em Bolonha, passou a infância mudando de cidade em cidade por causa do pai, preso em 1926 por dívidas de jogo. A mãe, Susanna Colussi, foi morar com os filhos em Casarsa della Delizia, na região do Friuli, no nordeste da Itália. Muito apegado a ela e ao irmão mais novo, Guido, partigiano morto pelos companheiros que apoiavam o marechal Tito, Pasolini escreveu seu primeiro poema aos sete anos, como uma resposta amorosa a um soneto escrito por Susanna.

Seus primeiros poemas em friulano estão povoados de mães e "ragazzi" de Casarsa - e declarações apaixonadas, tanto edipianas como homoafetivas. Curioso é que Pasolini aprendeu o dialeto friulano por ser a língua materna, o que representa não só um tributo à origem como uma espécie de renascimento no mundo camponês e arcaico - que ele tomava, em sua visão romântica, como contraponto da degeneração do subproletariado urbano, contaminado, segundo ele, pela ânsia consumista burguesa.

A primeira poesia do escritor, especialmente a dialetal, tem uma forte carga erótica e, ao mesmo tempo, uma doentia obsessão pela morte, a tal ponto que num poema (A Ex-Vida) do livro O Rouxinol da Igreja Católica (L'Usignolo della Chiesa Cattolica, 1958), ele parece antever sua tragédia final, quando foi espancado e mutilado na praia de Ostia, supostamente por Giuseppe Pelosi, um garoto de programa, hoje fora das grades - ele negou ser o autor do crime em 2005, afirmando que três homens sicilianos participaram do assassinato, insultando Pasolini com a palavra "comunista" seguida de outros adjetivos (essa é a versão contada por Abel Ferrara no filme Pasolini).

"Os primeiros poemas friulanos têm, de fato, essa obsessão tanatológica, revelando mesmo um excesso de consciência", analisa o tradutor Maurício Santana Dias. "Num dos poemas, Pasolini encena a própria morte, descrita em detalhes, com o corpo esmagado". Em termos analógicos, a morte do poeta, ligada simbolicamente a um dos vadios que descreveu em seu primeiro romance, Ragazzi di Vita (1955), representa mesmo a morte da poesia. "Ele sempre foi uma voz antagônica, um defensor das culturais orais que estão em vias de extinção, ameaçadas pelo que chamava de genocídio cultural", observa o tradutor, que ouviu seguidas vezes gravações de Pasolini recitando seus poemas friulanos de Casarsa.

Pasolini não falava o dialeto da mãe. Aprendeu o friulano como "uma espécie de ato mítico de amor, como os poetas provençais". Esse ato mítico deriva também da leitura radical que Pasolini faz da obra do grego Parmênides, o poema Sobre a Natureza, para desenvolver o conceito de sacralidade natural, tão bem explorado no prólogo de seu filme Medeia, em que um centauro tenta explicar a um menino duas visões de realidade que se dissipam com o passar dos anos (ao envelhecer, ele não mais verá o centauro, criatura fantástica que desafia a razão). Para Pasolini, não existia nada de natural na natureza. Tudo era sobrenatural, como para nossos ancestrais. Não sem razão, era o homem exato para contar a vida de Cristo, o que fez em seu O Evangelho Segundo São Mateus, talvez o mais belo filme sobre a vida do Messias.

Cristo e Marx surgem aqui e ali nos poemas de Pasolini. Em As Cinzas de Gramsci(Le Ceneri di Gramsci, 1957), ele tenta reconciliar o idealismo de Croce (sua crença tanto da utopia revolucionária como no catolicismo) em contraposição ao materialismo do mundo contemporâneo. Até porque se mostrou avesso às idéias dos revolucionários de 1968 - Pasolini era contra o aborto e defendeu os policiais contra os estudantes de maio, filhos diletos da burguesia - o escritor e cineasta, alinhado com o marxismo, foi considerado reacionário. Seu apego às formas arcaicas de poesia era vista com desconfiança pelos vanguardistas, que pareciam não entender o propósito do resgate pasoliniano: ao eleger o dialeto friulano, tudo o que queria era decifrar o seu tempo presente no pretérito.

"Ele e Ungaretti foram muito amigos, mas Pasolini propõe outro tipo de modernidade, que não é tão abstrata, vaga, mas a de uma poesia narrativa, quase ensaística, que, em A Nova Juventude, chega ao abandono total das utopias, concluindo na desolação de Escritos Corsários e Cartas Luteranas, em que chega a falar que o humano acabou", conclui o tradutor.


Poemas: Pier Paolo Pasolini
Organização: Maurício Santana Dias e Alfonso Berardinelli
Tradução: Maurício Santana Dias. Editora: Cosac Naify (320 págs., R$ 59,90)

Comunicado à ANSA (Recife)- poema de 1970

“Como é notícia de jornal, começa com um pouso de emergência no Recife.
Aqui chove; no aeroporto em construção, passando
em frente a um grupo de operários que trabalham, olhos
se erguem para os passageiros
É assim que o Brasil me saúda
E retribuo a saudação com meu coração burguês
que já sabe o que vai receber por aquilo que dá.
Nestes bancos desolados se espera um novo voo, de emergência
Não há nada de novo: eu sei de que fala
O corpo não lavado e a melancolia
Minha companheira* com sua ansiedade, no ar tépido da chuva,
e sua sede de graça: cegada para sempre – este peso que nós burgueses
trazemos no peito por tudo o que não sabemos
e a necessidade de elogios de modo que a vida nos cobre como uma veste úmida e suja,
e os raros momentos de felicidade logo se tornam lembranças
de que nos vangloriamos; e o peso aumenta
as feridas de um insucesso nos obrigam a calmas consoladoras
a cômicos dar de ombros a hilaridades esnobes,
ali sentados naqueles bancos desolados do Recife

* A “companheira” a que o poema se refere é Maria Callas (1923-77)

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