sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

César Felício: Consenso e legitimação, ilusões que se unem

• Governo procura mais convencer do que ouvir

- Valor Econômico

Um equívoco coletivo, talvez um dos mais longevos da história recente brasileira, renovou-se ontem, com a reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. À parte os recados mútuos e anúncios feitos na longa reunião em Brasília; o Conselhão tende a ser um contrato programado para o fracasso, pela divergência de propósitos entre o anfitrião e seus convidados.

Tanto em 2003, quando criado, quanto na tarde de ontem, os conselheiros pareciam alimentar a aspiração de que estão em um órgão deliberativo e verdadeiramente consultivo. Em uma de suas primeiras frases no discurso de ontem, o presidente do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco, afirmou, dirigindo-se ao Executivo: "Um olhar externo poderá representar a chave de uma nova percepção."

Dos 92 conselheiros empossados ontem, 51 são diretamente do meio empresarial ou a ele ligados. Os demais comandam os principais movimentos sociais, centrais sindicais e igrejas. Trata-se de uma elite e a composição do Conselhão não mudou de modo significativo desde 2003.

Em um plano ideal, a formação de consensos neste âmbito poderia suplantar o impasse da democracia representativa no país, traduzido em um Congresso de maiorias partidárias impossíveis, hegemonias de circunstância e barganhas disfuncionais.

A estrutura institucional do Legislativo hoje fomenta a paralisia, para um lado ou outro. Houve um tempo, já distante, em que o presidente era um organizador de coalizões que aumentavam a governabilidade. Definitivamente não é o caso de Dilma Rousseff, e seu antecessor imediato a conseguiu de maneira precária, como evidenciou a derrota em 2007 no Senado ao tentar prolongar a CPMF; e desastrosa, como ficou evidente no escândalo do mensalão.

Da parte do governo, o que se busca, ontem e hoje, é legitimação. Um respaldo, sobretudo no meio empresarial, para que se mostre ao Congresso que a procrastinação não afetará apenas ao Planalto, mas a uma gama de interesses organizados. Á época de Lula, as legitimação era parte de um projeto de poder a longo prazo. Agora a meta é sobreviver por três anos.

Nada disso funcionou bem no tempo do ex-presidente, como recorda uma ex-conselheira, a cientista política Sonia Fleury, da FGV do Rio. O conselho pouco influiu. Duas iniciativas nasceram de suas reuniões: a política de crédito consignado e a ampliação do Simples. Lula e seus ministros procuravam muito mais convencer do que ouvir.

Em seu discurso ontem, Dilma mostrou que essa diretiva permanece. Em que pesem garantias protocolares como "estamos abertos a conhecer opções" e "temos toda disposição do mundo para ouvir e dialogar", a presidente fez um pedido claro para que a plateia dê o seu aval a uma agenda de curto prazo absolutamente definida: a prorrogação da DRU, a tributação dos juros sobre capital próprio, e, acima de tudo, a volta da CPMF. "Peço que reflitam sobre a excepcionalidade do momento", disse Dilma. É um apelo, que se sobrepõe em sua ênfase a uma abertura a qualquer fórmula alternativa. Aliás, é mais do que isso: é uma condição para que o governo adote medidas de estímulo à economia, como a própria presidente frisou.

Dilma mostrou-se menos impositiva em relação ao tema da reforma da Previdência. Traçou o diagnóstico conhecido de que o sistema é insustentável com as atuais regras, observou que a fórmula móvel 85/95 adotada no ano passado é temporária e não antecipou qualquer sugestão sobre o que pode ser proposto ao Congresso.

Preferiu concentrar-se em limites que decidiu estabelecer: haverá uma regra de transição para quem já está contribuindo e a preservação de direitos adquiridos de quem recebe os benefícios. Neste ponto foi uma fala para um público específico, o seu próprio partido, que tende a deixar a questão em aberto para o arbítrio de seus parlamentares.

A cautela de Dilma em relação a este assunto evidencia o alcance modesto de um fórum como o Conselhão para o governo fazer prevalecer seus pontos de vista. Ficaria a reforma pendente da construção de um improvável consenso.

Como espaço legitimador, o Conselhão do passado teve alguma serventia para Lula. O governo de então beneficiava-se de outro clima social, além da maré favorável na economia.

"A sociedade está muito mais polarizada do que estava na década passada e menos capaz de formular propostas. O que estamos vendo são imensas mobilizações, mas sem espaço para debate", comentou Sonia Fleury.

Para a ex-conselheira, "há uma ausência de lideranças e uma falta de compromissos de todos os lados". A polarização, a partir de um certo ponto, impede que visões contraditórias convivam em um mesmo ambiente, a não ser que tratem de platitudes.

"Sem trazer o contraditório para um debate efetivo, o Conselhão será inócuo como um instrumento de legitimação", comentou.

A situação de anomia que vigora no país desde antes da reeleição presidencial favoreceu a aparição de paradoxos. O ambiente de descrença e o jogo de empate entre as forças políticas, a incerteza sobre a sobrevivência de cada um a partir da eclosão da Operação Lava-Jato, de certa forma, paralisou e ao mesmo tempo garantiu sobrevida a Dilma.

No processo de impeachment presidencial anterior, seus defensores sabiam bem o que queriam e a narrativa demarcava bem quem era o ser rastejante e quem era o sal da terra. O ambiente político turvou-se de tal maneira surrealista que Dilma deixou de ser protagonista da discussão de seu próprio afastamento. O impeachment voltou a ser improvável, fundamentalmente, pela situação peculiar que vive o presidente da Câmara e pela maneira como Eduardo Cunha lida com ela.

Com o evento de ontem, Dilma tenta não ficar na dependência de variáveis que está longe de controlar. Por enquanto, não parece haver teto para sua decolagem.

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