- Folha de S. Paulo
Começa a se consolidar uma explicação padrão do impeachment dentro da esquerda. Em diferentes versões, ela tende a envolver alguma combinação de (a) efeitos do ajuste fiscal de Levy, (b) uma articulação política entre elite econômica, mídia e Judiciário e (c) a radicalização da classe média, ressentida com a diminuição da distância entre ela e os pobres. Essa coluna é sobre essa terceira tese.
Em seu livro "Anatomia do Golpe", de 2016, o sociólogo e ex-presidente do Ipea Jessé Souza argumenta que, durante o ciclo de prosperidade lulista, "muitos, especialmente na classe média tradicional, não gostaram de ter de compartilhar espaços sociais antes restritos com os 'novos bárbaros'" (p. 82). Entre os espaços compartilhados Souza cita aeroportos (que tornaram-se acessíveis a brasileiros de menor renda na última década), shopping centers ("invadidos" por jovens de periferia durante os célebres "rolezinhos") e estradas congestionadas pela chegada dos novos motoristas.
Esse ressentimento diante da diminuição da desigualdade seria, segundo Souza, irracional: em que pese a ampliação do acesso às universidades, as desigualdades de capital cultural e social que distinguem as classes sociais permaneceram razoavelmente intocadas.
Assim, para Souza, a classe média, movida por esse ressentimento irracional, teria se deixado manipular por elites econômicas e políticas que teriam objetivos muito diferentes dos seus; e teriam constituído a base popular do processo de impeachment de Dilma Rousseff (o "golpe" do título do livro).
Em si, a tese do ressentimento não é absurda. É comum, por exemplo, que ricos de famílias tradicionais demonstrem ressentimento diante de "novos ricos". Em tese, algo semelhante poderia ter acontecido alguns andares abaixo na hierarquia social.
Mas o que salta aos olhos no trabalho de Souza, e nos outros que pude encontrar defendendo a mesma tese, é a falta de evidência empírica sistemática de que o ressentimento de classe média sequer exista em alguma escala relevante.
Eu conheço gente de classe média que, de fato, se ressentiu de ter visto pobres no aeroporto, mas era gente que já era bastante preconceituosa antes da mobilidade social do lulismo. E também conheço gente de classe média que viu na "Nova Classe C" novas oportunidades de negócio.
Mas se quisermos basear nossa explicação do impeachment no argumento do ressentimento, precisamos de evidências mais sistemática do que "eu conheço alguém": precisamos de pesquisas de opinião, trabalhos de campo, etc. Por enquanto, não temos nada disso.
E mesmo se o ressentimento tiver existido, como saber se foi ele o fator que levou a classe média às ruas? O próprio Souza admite que Dilma foi, em um certo momento, mais popular que Lula na classe média, e o processo de mobilidade social continuou durante a era Rousseff. Por que o ressentimento não levou a classe média às ruas antes, digamos, no auge da mobilidade?
É preciso enfatizar, como faz Souza, que muita gente que ajudou a derrubar Dilma Rousseff jogou pesado, jogou sujo, e tinha sua própria agenda. Mas começar a conversa supondo que os manifestantes da Paulista foram enganados soa demais como autocondescendência da parte da esquerda.
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