- Valor Econômico
Foro privilegiado mantém presidente como fiador
O presidente Michel Temer perdeu seus mais próximos colaboradores na mesma velocidade com a qual montou a principal âncora do governo, a maioria no Supremo Tribunal Federal. Por isso, a profusão de acusações mútuas de atuais e ex-colaboradores escancara o conluio da tripulação que assumiu o leme em abril do ano passado, mas não revela uma nau à deriva.
O mapa que a norteia é conhecido. Pretende entregar reformas que distribuem desigualmente o custo do rombo fiscal e salvar uma parte daqueles que o produziram, não necessariamente nesta ordem. Precisa, para isso, do Congresso e do Judiciário. Tira seu poder da simbiose cada vez maior entre os dois Poderes.
Temer apresenta-se a um Congresso que tem metade de seus integrantes na condição de atuais e virtuais réus do Supremo Tribunal Federal como um presidente que tem força junto à Corte. Esta condição lhe é assegurada pela existência do foro privilegiado. Daí porque sua manutenção se transformou em uma questão de Estado. De que adianta para Michel Temer a costura minuciosa de maioria no Supremo se sua base parlamentar estiver ao alcance de Moros, Bretas ou Vallisneys?
Duas entrevistas, no carnaval do fora-Temer, escancararam a importância estratégica do foro para o mandato presidencial. Um atual e um ex-ministro do STF revezaram-se na missão, desprovida de sutilezas, em depoimentos a Rafael Moraes, Breno Pires e Alexandra Martins ("O Estado de S.Paulo").
Gilmar Mendes apela ao sofisma de hábito. Ante as evidências de que os processos de políticos caducam no Supremo sem julgamento, o ministro comparou o baixo índice de condenações na Corte com aquele, igualmente irrelevante, de resolução de homicídios. Faz pouco da inteligência do leitor. José Sarney e Moreira Franco foram recentemente agraciados com a prerrogativa de foro porque a primeira instância pretendia levar a cabo os processos e não porque tivesse a intenção de procrastiná-los.
Visto que a simbiose com o Congresso espraiou a chantagem como método, o ministro defendeu parlamentares que, ante a perspectiva de perda de foro por decisão do Supremo, ameaçaram estender a extinção da prerrogativa à magistratura e ao Ministério Público.
Reeditou velho dueto com Nelson Jobim. Como se despertasse de longa hibernação, o ex-ministro veio a público condenar a condução coercitiva de Luiz Inácio Lula da Silva e a quebra de sigilo telefônico da então presidente Dilma Rousseff. Dado que já se passaram onze meses do ocorrido, não espantaria se a repentina lembrança de Jobim esteja relacionada com a imputação de responsabilidades às autoridades judiciais da Lava-Jato se igualmente desprovidas de foro.
O ex-ministro não se vale de entrelinhas. É destemido e direto, apesar de tardio: "Esse episódio é seríssimo. Houve algum processo para verificar se houve algum abuso? Há um inquérito sobre isso? Que eu saiba, houve várias tentativas por parte dos interessados e não aconteceu nada".
Mendes e Jobim tocam pelo mesmo diapasão do ativismo judicial, desde que em benefício de suas causas. Este que está em curso na Lava-Jato é, nas palavras de Jobim, exagerado, espetaculoso e ridículo. Depois do libelo do sabatinado Alexandre de Moraes, resolveram não deixar a peteca cair e investiram, em uníssono, contra um Judiciário que adentra as prerrogativas do Congresso.
Apostam na perda de memória recente do leitor. Mendes sentou em cima de voto sobre financiamento de campanha durante um ano e meio e Jobim foi o maior defensor e executor da verticalização do voto, símbolo do mandonismo judicial que, em 2002, se apostou capaz de entregar o Palácio do Planalto para o ex-ministro José Serra.
As afinidades só cresceram desde que ambos dividiram os assentos mostarda do Supremo. No momento estão absolutamente irmanados em defesa da tese que, no Supremo, é alvejada por Luís Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin. O trio completado por Rosa Weber é o reduto minoritário da resistência ao acordão capitaneado pelo presidente da República. Cármen Lúcia ensaiou autonomia, mas queimou na largada ao ceder à criativa decisão que manteve o então presidente do Senado e réu no Supremo Tribunal Federal, Renan Calheiros, no cargo, afastando-o da linha sucessória.
Já se esperava que Michel Temer fosse compor folgada maioria congressual, fruto que é de um gol de mão do parlamento. Mas o presidente foi além. Estendeu sua reconhecida habilidade de pactuar acordos ao Judiciário. Vale-se do discurso da harmonia institucional e, principalmente, da cumplicidade da maioria dos ministros com um sistema político que avalizou sua ascensão até o topo da magistratura. O abrigo oferecido ao ex-presidente José Sarney é o melhor exemplo disso.
A coabitação no poder entre Temer e o Supremo pressupõe que o presidente da República consiga arrancar do Congresso as reformas reclamadas do mercado para destravar investimentos e viabilizar a retomada da economia sem a qual esse frágil equilíbrio institucional custará a sobreviver.
Num país com 13 milhões de desempregados é mais fácil convencer que é preciso abrir mão de direitos para incluir um maior número de pessoas no mercado de trabalho. A previdenciária será mais custosa porque portadora de uma ilusão, a de que é possível para a maioria das pessoas somar 49 anos de contribuição num mercado de trabalho tão excludente.
Para manter a atratividade do país, o presidente tem um discurso a ser construído. Aquele destinado a convencer investidores de que uma reforma mitigada com idade mínima e regra de transição - defendidas por Lula - é melhor que uma proposta radicalizada que entregue o governo de bandeja para um candidato sem cabresto em 2018.
O presidente caminha para abrir sua cozinha para o PSDB e reforçar a aliança com a qual pretende enfrentar a sucessão. Por mais que a delação da Odebrecht ameace explodir seu palácio de vidro, o foro privilegiado garantirá o vagar necessário para que tudo ande sem sair do lugar.
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