Ao misturar na divulgação de uma megaoperação policial questões sanitárias, com as quais não têm expertise para lidar; com corrupção, na qual tem comprovado know-how, a Polícia Federal alarmou a população e provocou um imbróglio internacional que pode subtrair milhões de dólares das empresas exportadores de carne do país. Ainda que o novelo de ilegalidades cometidas por empresas, fiscais e funcionários graduados do Ministério da Agricultura ainda vá ser desenrolado em breve, os indícios alegados de adulteração da carne são tecnicamente contestáveis - para especialistas, chegam a ser primários - e não parecem, pelas informações fornecidas, suportar a suspeita de que seja uma prática generalizada do setor, como foi sugerido.
Os policiais envolvidos em uma das maiores operações da história da PF, pelos dados até agora disponíveis, fizeram apenas uma inspeção in loco para apoiar irresponsavelmente a denúncia de que o consumidor brasileiro está sendo envenenado por empresários inescrupulosos e fiscais venais. Com o prestígio em alta, encarregou-se da operação a Delegacia de Repressão ao Crime Organizado, que também opera na Lava-Jato. Pelos resultados amplamente exitosos de sua ação na Lava-Jato, a divulgação das investigações suspeitas não poderia deixar de ser acolhida sob o signo da verdade e ao pé da letra. As denúncias assombraram consumidores e clientes internacionais dos frigoríficos, e provocaram espanto pela fragilidade das provas em relação a falhas sanitárias.
A PF está atrás de indícios de pagamento de propinas, em especial ao PMDB, que montou um feudo há anos no Ministério da Agricultura, além de outras legendas, como PP e PDT. Nesse caminho há rastros melhor delineados. Três dezenas de funcionários do ministério estão na linha das investigações e os superintendentes da pasta no Paraná e em Goiás foram exonerados anteontem. Mas para caçar corruptos, a PF deixou de lado por dois anos supostos indícios de adulteração da carne por frigoríficos que precisaria ter encaminhado para apuração por outros órgãos de governo. Não o fez e quando entrou na questão, o fez de forma desastrada e leviana.
A ação do Ministério da Agricultura para apagar o incêndio foi criar um sistema de vigilância especial para os 21 frigoríficos envolvidos e centrar seus esforços para que a reação dos compradores internacionais, caso houvesse, ficasse a eles circunscrita. Em jogo, estão mercados que compraram cerca de US$ 4 bilhões de carne bovina, suína e de frango do Brasil em 2016. Os prejuízos potenciais parecem ter sido contidos em relação à Coreia do Sul e União Europeia, enquanto os chineses suspenderam os desembarques de carne brasileira até que o governo preste informações que os convençam da ausência de riscos nos produtos importados do Brasil.
O sistema de fiscalização brasileiro, por outro lado, é vulnerável e dá margens a falhas sanitárias e corrupção. Determinações do Tribunal de Contas da União ao Ministério da Agricultura, em novembro de 2014 - descumpridas -, mostram brechas importantes (Valor, 21 de março). Uma das constatações é que o Sistema de Defesa Agropecuário (SDA) não tem o menor controle do trabalho diário de centenas de fiscais. Os frigoríficos que exportam são submetidos a visitas bimestrais, mas não existe sequer calendário de inspeção para vários outros, que atendem o mercado doméstico.
Em um sinal de que o desleixo pode não ser incidental, abrindo caminho para achaques e propinas, o TCU constatou que autos de infração por fraudes, adulterações e falsificações não são divulgados no site do Ministério, isto é, priva consumidores de informações básicas e circunscreve o conhecimento de irregularidades a um pequeno número de pessoas da pasta.
Ao lotear cargos técnicos com indicações políticas, o sistema de inspeção torna-se frágil e manipulável por interesses de fiscais em busca de proveito próprio ou de caixa de campanha e empresários sem escrúpulos em detrimento dos consumidores. A perpetuação desse esquema, agora na mira da PF, abre flancos para o ataque de concorrentes das carnes brasileiras no mercado externo e para o descrédito das empresas no mercado doméstico. A ação saneadora da PF é importante, com menos alardes e mais provas - que faltaram em tema tão delicado quanto o dos riscos à saúde pública.
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