sexta-feira, 5 de maio de 2017

A longa travessia até 2018 | Fernando Luiz Abrucio

- Valor Econômico | Eu & Fim de Semana

Há anos cuja duração em termos políticos valem muito mais do que a soma dos dias do calendário. Alguns valem quase por uma década, como 1917, 1945 e 1989, para ficar em casos paradigmáticos. A longa travessia entre 2017 e 2018 - na verdade, o trajeto atribulado já começou em 2015 - exigirá muito de nossos homens públicos, das principais lideranças sociais e econômicas, dos formadores de opinião. A temperança será a qualidade mais essencial para enfrentar um conjunto de obstáculos que o país terá de ultrapassar se quiser chegar razoavelmente bem na próxima eleição presidencial e, sobretudo, no momento de posse do novo presidente, cujo quadriênio não poderá, para o bem da sobrevivência do Brasil, repetir o atual.

A lista de obstáculos é impressionante. Começando pelos econômicos, é preciso sair de vez da recessão, mesmo sabendo que um crescimento mais robusto demore um pouco mais. A saída do período recessivo não trará de imediato os milhões de empregos perdidos, mas sem ter atividade econômica minimamente positiva o desemprego só crescerá. Também é essencial melhorar o cenário das contas públicas, pois sua crise impede a recuperação econômica do país e, pior, reduz os gastos fundamentais para o bem-estar da população. Se nesse meio tempo ainda for possível modernizar parcela importante das instituições estatais, será possível retomar com mais fôlego e perspectiva de longo prazo o desenvolvimento.

A agenda econômica é estratégica, mas ela não pode ignorar os desafios sociais, que só se ampliaram de 2015 para cá. Obviamente que os Estados precisam aprender a ser mais responsáveis, só que o Governo Federal não pode fingir que não é com ele o descalabro que tomou conta do Rio de Janeiro. O aumento da violência ganhou ares de anomia. Falar somente das reformas com um cenário social como esse não é apenas temerário do ponto de vista político, como é uma forma perversa de entender o processo civilizatório. Para que a longa travessia de 2017 a 2018 seja completada sem que o barco afunde, será necessário aliar a agenda econômica com uma estratégia para lidar com a crise social. O que o governo não entendeu é que sua parca popularidade tem origens para além das dificuldades políticas. O povo vai muito mal e é preciso dar algum fio de esperança a ele - enquanto isso, parte da base parlamentar de Temer propõe medidas aos trabalhadores rurais que os levarão de volta à República Velha.

Mas são as dificuldades políticas as que mais tornam nublado o caminho até a próxima eleição presidencial. Como fator preponderante está a Operação Lava-Jato, que se tornou, com acertos e erros, um projeto de purificação sem-fim da política nacional. Sem dúvida, mesmo com alguns abusos injustificáveis, ela desnudou o perverso sistema de financiamento político que tomou conta de quase todos os partidos do país. O que sairá disso, ninguém sabe. Até porque também ninguém tem a menor ideia sobre a duração desse processo. O sistema político perdeu credibilidade popular e as principais lideranças, do governo e da oposição, não têm nenhuma bússola para se guiar. À essa hecatombe, soma-se a crise econômica-social e a desesperança da população em relação aos políticos, o que pode trazer renovação ou aventureiros.

Há quatro riscos derivados desta situação. O primeiro tem a ver com a estratégia avestruz, de mera autodefesa, fingindo que não aconteceu nada no país. Depois da delação do fim do mundo da Odebrecht - e ainda outras virão, com certeza - ficou inviável os políticos simplesmente negarem tudo. É preciso que proponham mudanças. No entanto, o mudancismo tem de ser parcimonioso, resultado de diálogo e de diagnósticos objetivos sobre os problemas. Por exemplo, no caso da reforma da Previdência, as partes devem debater com dados e evidências, sem perder a capacidade de construir compromissos e acordos sobre a justiça e a velocidade das transformações. Não é óbvio repetir que nenhuma reformulação do sistema previdenciário é uma derrota para todos os lados.

O segundo risco é o da crença numa purificação absoluta da política e da sociedade, advinda dos intrépidos heróis do Ministério Público e do Judiciário. Não se deve cansar de realçar os méritos da Lava-Jato, contudo, do mesmo modo, é necessário ter cuidado com a dose do remédio, que pode virar veneno para a democracia. É bem provável que o STF corrija, daqui para diante, alguns excessos dessa operação. Muitos vão bradar que tudo foi perdido. Diria que é necessário continuar combatendo a corrupção, sem caminharmos para o arbítrio.

Também há o risco da perspectiva voluntarista e mágica vir pelo lado da política. A última pesquisa Datafolha revelou, com precisão, que quanto mais tradicionais forem os políticos, menos chances eles terão em 2018. É cedo para saber se tal fotografia vai virar um filme. De todo modo, por ora os vencedores são os que mais extremam os discursos e que se colocam como outsiders em relação ao sistema. Não é só Bolsonaro que se encaixa nessa descrição. Lula é igualmente beneficiado, porque hoje é menos identificado com a história de um partido estruturado como o PT, o que o levou à moderação ao longo do tempo (vide a "Carta aos Brasileiros"). Ele está mais sintonizado agora com o discurso de injustiçado e defensor dos mais pobres, num cenário que soma a crise com a total insensibilidade do centro do poder federal em lidar com o povo. Isso se parece com o discurso lulista de 1989, mas essa posição tem dois problemas: gera muita rejeição - o que pode inviabilizar uma vitória em um segundo turno - e cria um discurso de difícil operacionalização na hora de governar.

O último risco já está entre nós faz algum tempo e pode agora se tornar um suicídio de todos. Falo aqui da polarização que tomou conta do país, mais fortemente desde 2013. Se os políticos e os setores políticos se entrincheirarem, cada qual adotando uma estratégia de soma-zero, o país vai chegar cambaleando em 2018. O exemplo agora das reformas espelha bem esse risco.

Na linha do entrincheiramento, o lado do governo optou pela estratégia "blitzkrieg". É preciso aprovar a toque de caixa as reformas, pois o país está num estado de emergência econômica. Ademais, o presidente não tem nenhuma esperança de ter popularidade e de concorrer a qualquer coisa no futuro - no máximo, pode pensar na Academia Brasileira de Letras. Como só lhe sobrou a impopularidade, melhor não conversar muito com a oposição e a sociedade, aprovando mudanças legislativas em tempo recorde. Sem entrar no mérito da reforma trabalhista, com a qual eu concordo em vários pontos, é inadmissível o rito legislativo que a ela foi dado, porque se pretende modificar dezenas de artigos legais sem um efetivo processo de deliberação democrática. Como Jürgen Habermas e outros teóricos da democracia já mostraram, a forma do processo decisório - aqui, o seu tempo - é tão importante quanto os fins almejados.

Na verdade, o processo de "blitzkrieg" da reforma trabalhista não é uma exceção. Diálogo é uma palavra que não faz parte do vocabulário do governo - mesmo no caso da reformulação trabalhista, enganou os sindicatos, fazendo reuniões no Executivo que não foram levadas em consideração posteriormente. A maneira como tratou da greve, deslegitimando-a de antemão (parecia o discurso de conselheiros de Dilma após a primeira manifestação pelo impeachment), e como tem lidado com outras questões sociais, em particular o descalabro da política indigenista, revelam uma enorme dificuldade de entender que a urgência dos temas deve caminhar juntamente com sua discussão pormenorizada com todos, inclusive com os que discordam. Isso dá mais legitimidade às propostas governamentais.

O entrincheiramento da oposição e dos movimentos sociais é de outra natureza. Mesmo tendo razão quanto à bolha que o governo criou para se proteger da discórdia e do diálogo, os oposicionistas têm de explicar melhor não só o que querem, mas como vão implementar suas ideias. Aqui, falta clareza quanto ao projeto a ser defendido. Sabe-se que Lula e Dilma gostariam de ter avançado mais na reforma previdenciária, particularmente no que se refere ao ataque a privilégios e à adoção da idade mínima. Tais propostas estão documentadas, quando não filmadas e gravadas. Faz sentido ignorar completamente o que disse num passado tão recente? O que houve para se ter uma mudança tão brusca?

Quaisquer que sejam as pedras no meio do caminho da longa travessia, quem quer seja o vencedor da eleição presidencial, a única certeza é que será preciso governar. Várias das discordâncias do debate atual me parecem defensáveis por cada parte, mostrando como o pluralismo não é só uma forma de tolerância frente ao outro, mas também, como defendera Stuart Mill, um mecanismo mais efetivo de se buscar a verdade. Todavia, outra grande parte das ideias atuais cheira a puro oportunismo, que se alimenta da fragilidade do governo e do clima de polarização maluca que tomou conta do país. Com esse combustível, todo o processo eleitoral (que começará cedo), em vez de nos tirar da crise, será seu grande alimento.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP,

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