sexta-feira, 5 de maio de 2017

Empresários humanistas | José de Souza Martins

- Valor Econômico | Eu & Fim de Semana

Algumas figuras notáveis, ainda que raras, da história do capitalismo industrial, são as dos empresários humanistas. Os que inventaram freios sociais e éticos à obsessão do lucro sem medida. Os que pensam o lucro sobrepondo o nós ao eu. São os empresários de uma sociedade capitalista alternativa, regulada por valores éticos e de compromisso de quem ganha com quem trabalha e que, com seu trabalho, lhes permite ganhar. Os que compreendem as funções sociais do capital. Os que conscientemente promovem a criação de emprego e renda e a educação e distribuição de conhecimento emancipador e libertador: a arte, a literatura, a ciência, a civilidade.

Há quem limite a correção das adversidades do trabalho ao combate à pobreza e à promoção da distribuição de renda, pressupondo inclusão social como inclusão na sociedade de consumo. Essa é uma visão impolítica e pobre dos problemas sociais que da indústria decorrem. Uma economia socialmente emancipadora abrange a formação de pessoas cultas e sábias e não simplesmente consumidoras. Como o ato de fazer com que a música de um maestro como Júlio Medaglia chegue ao ouvido do jovem de um bairro operário ou fazer com que contos como os de Anna Maria Martins cheguem à sensibilidade de um morador da periferia.

A mera sociedade de consumo é uma sociedade redutiva dos horizontes da pessoa, a sociedade do ter e não a do ser.

Desses empresários sociais, o que me vem à mente de imediato, como figura emblemática, é Adriano Olivetti, empresário italiano do complexo industrial de máquinas de escrever, que se expandiu para outros ramos. Posto a trabalhar pelo pai numa fábrica da família, aos 13 anos de idade, compreendeu ali o efeito desumanizador da alienação do trabalho no divórcio entre o fazer e o saber, fundamento iníquo da coisificação da pessoa. Estudou na Politécnica de Torino. Era socialista liberal. Combateu o nazifascismo. Fez parte do grupo que, durante a guerra, retirou da Itália, para levá-lo em segurança à França, o líder comunista Palmiro Togliatti. Identificava-se com ideias de Antonio Gramsci, pai do marxismo antropológico que tornou tão peculiar o socialismo italiano. Olivetti era um humanista. Não só pelo que pensava, mas também pelo que fazia. Era um chapliniano.

Desenvolveu uma doutrina social e industrial própria, o comunitarismo. Para Olivetti a desalienação se daria na prática, na própria organização do trabalho, com a criação de mediações de reconciliação do trabalho manual com o trabalho intelectual, entre a produtividade e a criatividade do próprio operário. Não se trata apenas de justiça social, no sentido elementar e caritativo da palavra. Trata-se de repensar o trabalho de maneira a libertar o corpo e a mente de quem trabalha da servidão imposta pela impessoalidade da máquina e do seu ritmo coisificador. Olivetti introduziu a atividade intelectual no próprio trabalho operário. Seus operários tinham na fábrica uma ampla biblioteca e entre os empregados havia poetas e artistas. O cotidiano dos trabalhadores era travessado pela cultura erudita.

Há os que tem uma compreensão meramente materialista e mecanicista das relações de trabalho, com o que desconhecem a poesia que há no trabalho. Uma das irracionalidades da indústria moderna está na organização social da produção que priva o trabalho de sua dimensão poética. Os artesãos que os operários foram antes do desenvolvimento industrial se apossar da cultura e da inteligência contida na ação produtiva, e expropriá-la, levava-os a se reconhecerem como artistas que eram.

Teoricamente, o capital expropria o trabalhador do tempo de trabalho não pago. Não está na teoria, mas expropria-o, também, da poesia de seu trabalho porque a destrói. Trabalhei em fábrica em que suas diferentes seções tinham diferentes níveis de desenvolvimento tecnológico. Naquelas de mais persistência do trabalho artesanal, que é também trabalho intelectual, estavam os trabalhadores mais realizados como profissionais. Naquelas de mais intenso ritmo de produção, aquelas em que o trabalhador apenas repete gestos mecanicamente, estavam os trabalhadores mais infelizes e mais inseguros quanto ao que faziam, porque mais dramática sua alienação.

No Brasil, temos tido empresários humanistas, infelizmente esquecidos. Jorge Street foi um deles, de cuja obra resta a vila operária e as ruínas das escolas e dos serviços sociais básicos de sua fábrica. Roberto Simonsen, um dos fundadores da Escola de Sociologia e Política, fez de sua fábrica em São Caetano do Sul um laboratório dos direitos sociais e incorporou valores das relações de família dos trabalhadores à estrutura do sistema produtivo. Era um leitor crítico de Marx.
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José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “A Sociologia como Aventura” (Contexto), dentre outros

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