- O Estado de S.Paulo
Não é a primeira vez que a ambição destrói sonhos de quem não vê o feitiço do poder
Queixoso e em disparada, apostando na agilidade verbal para fornecer réplica à ruína, o ator oco aperta o passo.
Os acontecimentos comprimem-se num único momento. Clássico da emoção massificada, o Cine Theatro da política nacional encena mais um ato da peça Um Inventário de Erratas”. O espetáculo esbarra na frieza da plateia, que treinou os ouvidos e já distingue grito de argumento. A habilidade virou isolamento. O balanço geral da temporada confunde os críticos: um grande sucesso de bilheteria, enorme fracasso de público.
Muitos imaginam a política um teatro de iniciados, sem ordem, sem lei. Mistura diversidade de auditórios à disposição dos mesmos atores que se arrumam para serem vistos como prima-donas realçando suas vantagens. E vão em frente sem se dar conta de que a demagogia é uma oferta irreal de intimidade. A tentação de infringir normas contamina os Poderes. As aberrações querem se impor.
Sem aversão ao sensacionalismo, senhor da ideia de que vive uma saga de encantado, o ator cru é imprudente se aplaudido, estúpido se vaiado. Despreza as condições espirituais da companhia que o levou ao palco.
Não prestou atenção à causalidade histórica que produziu o seu sucesso. Só tem olhos para quem se aglomera na frente do tablado. Quer driblar o destino que colheu. Nessa afabilidade valiosa e recíproca, devedor, vira comprador. Velhos conhecidos de comédias e tragédias já encenadas fazem sua destreza avançar mais do que o cuidado. E cercado de afeto incapaz de sentimento verdadeiro, a trupe de atores acrobatas, acha que o teatro do poder ensina mais do que vida fora do palco.
Apostando na força inesgotável do faz de conta, empanturra o cenário com excessos. Até que, acusado de impor um novo sistema moral à peça que representa, flagrado na glória de usar plumagem alheia, revela uma imagem insatisfatória de si mesmo. Fantasia que o consagra como diretor-ator-protagonista de um espetáculo refém do patrocinador.
Agora, que a cada dia um choque revela o contexto de todas as apresentações, diz que o teatro é de marionetes e não é ele que movimenta os cordéis. “Somos fantoches incompreendidos, bonecos populares manipulados por animais ferozes.” Dissimulando, ameaça com o velho espalha-brasas. Esconde o longo trecho que declamou, adocicado e sem doutrina, que o fez benquisto de todos os enredos.
Donos das companhias teatrais eleitorais não têm os mesmos problemas do público que os escolhe. Até zombam de quem os prestigia. Cargos escondem tudo, inclusive muitos vícios. Por isso, vendo a confusão que se avizinha na nova temporada, ele quer antecipar o carnaval para prevalecer a inversão permitida que domina seus festejos. Vamos lá, dominar o espectador, caravanas de delírio para controlar a realidade por meio de palavras.
Os candidatos a atores farão leis para conhecer o segredo do público, sem revelar o seu. O político-ator tornou-se um canastrão: ele não quer viver sob a consciência do outro, que o olha. Como não aceita prova de erro, que considera normal, não aceita juiz algum.
Sua origem pragmática recolhia sobras do que encontrava à esquerda, mas foram os fundadores moderados da companhia que a vestiram de ideologia original. Foram estes que se organizaram para vencer por pontos e assim cresceram. Quando, só, pisou no ringue, jogou fora a teoria, quis ganhar por nocaute. A incontinência jogou-lhe a toalha. Deslumbrado com a lascívia do aplauso, aceitou o que o levou à lona, ajudando a fazer de “político” um xingamento.
Sempre disponível, ficou por cima da situação como ninguém. E se deixou a coisa pior do que encontrou, é o único culpado. A mudança que o perturba é a mudança democrática. Passou a perna no pudor, singelo princípio elementar. Ventríloquo, foi condenado, por ampliar a voz do mau costume.
Atropelou argumentos de justiça social por estranha noção de distribuição de renda e infiltração de classe. Misturava intuições a uma fábrica de decisões improvisadas. Ofereceu a poderosos a aquiescência que aumentava o leite e o mel do privilégio; aos pobres, a condescendência, que lhes abria o mundo da dívida e da dependência. Pressupondo a qualidade moral de todos os seus atos, quer escolher quem vai julgá-lo.
Tudo no debate em torno de sua performance é “atmosfera”. No papel de corajoso ou maltratado, a dinâmica é mais de espetáculo que de esclarecimento. O objetivo é impressionar os inocentes e apontar o inimigo no juiz. Como prova de gratidão, conferindo ardilosa superioridade à decisão de se sujeitar a alguém, atribui ao povo a inquietante tarefa de julgá-lo. Ideia tola, se no tribunal de multidão dá Barrabás.
Desde Plutarco aprende-se mais com a queda de um cavalo do que com o elogio de um adulador. Talvez por isso o juiz, ao perceber que ele não estava a altura de si mesmo, concedeu-lhe fiança. Tirando da sentença o caráter implacável de suprimir a liberdade, negada a seus parceiros, deu-lhe o estribo para descer da sela e rever seu jeito de montar. Mas como não quer se afastar dos seus defeitos, viu nisso um estímulo para cavalgar seus fãs. Montou um passeio por currais eleitorais que o livre de ler a peça que o condena. Ele quer degustar seu papel como narcótico, supondo que a dor falsa de um ator é mais verdadeira do que a dor real do espectador. Mas quando a plateia descobrir que não é ela a condenada, nada oferecerá alívio à sua dor.
Nos burgos podres o ator do teatro antigo ouve excelências do resignado: nunca reclamei de ninguém que me usa com promessas. Não sou governista porque sou pobre, sou pobre porque sou governista.
Não é a primeira vez que a ambição destrói sonhos de quem toma o poder por um gigante sem perceber nada do seu enfeitiçamento. E diante do desconcerto que é ver o ator se orgulhar de não admitir ninguém que o corrija, a peça em que atua deve, sim, corresponder inteiramente ao original da sua vida.
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*Sociólogo.
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