O Globo
Não são as Forças Armadas que podem devolver a paz ao Rio. Nem se deve esperar delas o que não é sua função
Achegada das Forças Armadas ao Rio de Janeiro fez desfilarem na minha memória três décadas de tentativas de conter a violência que assombra o estado. Como um choro cada vez com menos força, como uma faca que perde seu fio, a indignação e a angústia dos cariocas parecem deslizar perigosamente para o desalento.
É bom que as ruas estejam patrulhadas, que uma operação militar planejada se decida a enfrentar o crime organizado, um monstro que cresceu em todo o país e se estende aos países vizinhos, que domina e mantém sob o seu “governo” despótico a população mais pobre das grandes cidades confinada em territórios ocupados. E que lhe cobra “impostos” de todo tipo, dinheiro, fidelidade e submissão às suas leis e tribunais. Em troca, ganha balas perdidas que acham crianças e adolescentes. Esse monstro tem um comando, um projeto de poder político, as armas que o Exército tem, soldados treinados nos becos e muito dinheiro. É um inimigo de porte e nada garante o desfecho desse confronto.
Para a população do asfalto, o inimigo é o crime desorganizado, a violência que vem de qualquer lugar, que não se serve de fuzis de alta potencia — basta uma faca de cozinha bem afiada — e que vai matar quem passeie montado em uma bicicleta, falando no celular ou usando um cordão com santinhos no pescoço. Sabemos de onde vêm esses free-lancers do crime desorganizado que, há décadas, assaltam casas e apartamentos em quadrilhas improvisadas. A guerra contra eles é trabalho de Sísifo porque uma fábrica silenciosa produz em permanência a matéria-prima de que são feitos, em que se misturam ignorância, ódio, frustração e não pertencimento.
Uma sociedade sem espessura, sem promessa, sem projeto gera um imenso vácuo psicológico em que boiam fantasmas agressivos, o ódio do outro transformado em uma não pessoa, passível de ser assassinada pelo simples gosto de uma desforra contra um inimigo sem rosto que, por não ter rosto, está em toda parte e pode ser qualquer um.
Ambos, o crime organizado e o desorganizado, são o avesso do Estado ausente, de governos eficientes apenas na organização de seus próprios crimes. Suas quadrilhas assaltaram o Estado com uma ousadia maior do que a dos assaltantes de rua. Se o abandono e o desprezo que esses governos votaram sempre aos mais pobres, negando-lhes as mínimas oportunidades, é o chão de onde brota a violência, o exemplo da criminalidade dos próprios governantes é o que a faz crescer. Não é um acaso se a violência explode, demencial, quando se revelam criminosos o ex-governador, vários secretários e juízes do Tribunal de Contas, deixando atrás de si terra arrasada e uma polícia mal paga, sem formação, sequer gasolina nos carros.
Quem consegue medir o efeito psicossocial de descobrir um estado de cima a baixo minado pela corrupção, governantes bilionários e funcionários sem salários? Eis porque a corrupção é, sim, um gravíssimo problema de segurança.
Não são as Forças Armadas que podem devolver a paz ao Rio. Nem se deve esperar delas o que não é sua função. Podem dar maior segurança às ruas e, com serviços de inteligência, destruir arsenais e enfraquecer o tráfico de drogas, o que não é pouco. Mas não estarão aqui para sempre. Nós, sim, continuaremos a conviver com uma crescente população jovem que nem estuda nem trabalha, escolhendo entre políticos cínicos que vão passando de pai para filho as tetas do Estado.
A menos que, acordando para a nossa trágica realidade onde nem os que ainda vão nascer são poupados, encaremos a verdade: tudo depende de nós. Temos a responsabilidade de eleger um governante decente e competente que reconstrua a confiança no Estado, condição sine qua non para restabelecer a segurança no Rio de Janeiro. Não existe um candidato feito sob medida, esperando por nós. Há um perfil necessário, e há o processo, que exige energia, pelo qual iremos ao encontro de quem mais se aproximar dele.
Até agora, os mesmos de sempre se apresentam para encenar um baile de fantasmas. Que venham a se eleger com votações pífias sob o olhar indiferente de quem se recusa a votar em candidatos desprezíveis escolhidos por partidos desprezados, esse desastre não pode se repetir.
Só um fato novo, gestado na sociedade, pode refundar a cidadania: uma candidatura que mobilize as pessoas e quebre esse silêncio ensurdecedor que grita a intensidade da nossa decepção com a política. Que impeça que na eleição tenhamos que escolher entre as palavras de ordem de uma velha esquerda ou as ordens sem palavras de uma nova direita.
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Rosiska Darcy de Oliveira é escritora
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