domingo, 3 de setembro de 2017

Defesa da Venezuela trará custos ao PT em 2018, diz historiador

Entrevista José Murilo de Carvalho

Historiador coordena palestras na ABL sobre populismo e avalia que denúncias de corrupção podem levar à eleição de candidatos que se apresentam falsamente como antissistema

Gabriel Cariello | O Globo

Para historiador, descrença em políticos pode levar à escolha de líderes que se apresentem, autêntica ou falsamente, como antissistema. “Lembremos no que deu o caçador de marajás”.

• O populismo é um sintoma de crise da democracia ou consequência dela?

Populismo é conceito escorregadio. Tomado como apelo a grupos excluídos feito por figuras carismáticas é sempre consequência da democracia. Em países em fase de abertura da franquia eleitoral, como na América Ibérica do século XX, foi consequência da expansão democrática. Em países já com ampla franquia, como na Europa e nos Estados Unidos de hoje, é consequência de exaustão democrática.

• O enfraquecimento das instituições representativas com as denúncias de corrupção apuradas em investigações, em especial a Lava-Jato, pode produzir líderes populistas?

As denúncias causam desencanto e descrença nas instituições, nos políticos, na própria política. Isso pode levar à abstenção eleitoral (mais difícil no Brasil por causa da obrigatoriedade do voto), ao voto nulo (absurdamente não contado como válido no Brasil), ou à escolha de lideranças que se apresentem, autêntica ou falsamente, como antissistema.

• De que forma o fato de o país se mostrar dividido sobre temas importantes e a fragmentação da representação popular no Congresso podem favorecer ou desfavorecer o discurso populista?

O Brasil já passou da fase de inclusão eleitoral. Tem uma das franquias mais altas do mundo. O conflito hoje se dá, ou deveria dar-se, em torno do conteúdo das políticas públicas no sentido de serem mais ou menos distributivas, sobretudo tendo-se em vista nossa espantosa desigualdade social. Seria um conflito mais ideológico, que estava na base da criação do PT. No entanto, o envolvimento do partido no esquema de corrupção misturou as coisas. A divisão ideológica da sociedade entre esquerda e direita, seja lá o que isto signifique hoje, foi atravessada pela divisão corrupto/ não corrupto. Esta segunda fratura abre caminho para apelos, talvez não ao povão, mas a setores do que se chama de classe média em nome do combate à corrupção. Lembremo-nos de que já tivemos um caçador de marajás na presidência e no que deu.

• A expectativa popular por um candidato “fora da política” é um indicativo de que o país está predisposto ao discurso populista?

Parte substancial da população, não necessariamente o povão, está, sim, aberta a discursos anti-establishment. Mas uma das dificuldades do conceito de populismo está em definir o que é povo, tema central nas décadas de 50 e 60 do século passado. Seguramente, não há um povo só, há povos, mesmo se nos limitarmos a setores mais pobres da população. A parte mais pobre do povo, aquela formada pelos beneficiários da Bolsa Família, ainda mantém lealdade a Lula. Para ela, o que importa é a manutenção das políticas de inclusão social, e essa bandeira dificilmente será tomada de Lula, sobretudo por ser ele a única figura do PT que dispõe de algum carisma.

• Essa demanda por um “nome novo” na política indica que há espaço no país para um discurso de conciliação?

Não necessariamente. Esses “nomes novos” tendem a ser candidatos contra alguma coisa, centrados em práticas políticas e não no conteúdo das políticas públicas. Não agregam em torno de programas substantivos.

• O que explica, no século XXI, o discurso populista ainda ser um mecanismo eficiente para obter votos?

Nos casos europeu e norteamericano, a meu ver, alguns líderes, em geral com alguma dose de carisma, perceberam a insatisfação de setores da população pelo que veem como descaracterização do país e perda de empregos devidas à imigração, caso europeu, ou pela perda de empregos e de status social devidos a avanços tecnológicos. Essa é a grande novidade. Não é o nosso caso.

• A acentuação da crise na Venezuela pode provocar reação contrária ao discurso nacionalista no Brasil e na América Latina?

Pode reforçar a crença dos que já eram contra e criar embaraços para os que apoiam. A postura do PT, representado por sua presidente, em defender o regime de Maduro pode ter, se mantida, alto custo para o partido na batalha eleitoral do ano que vem.

• O que é possível aprender com o avanço de figuras “populistas”? Temas nacionalistas podem vir a ganhar peso na pauta política brasileira?

O Brasil não sofre o impacto dos fenômenos europeu e norte-americano. Não vejo o surgimento de surto nacionalista entre nós. Seu problema maior continua sendo o da pobreza e do desemprego. O apelo aos excluídos, ao povão, iniciado por Getúlio Vargas na década de 1940, foi retomado por Lula 40 anos depois. O drama do PT, partido que se chamou dos trabalhadores, mas que só teve êxito ao expandir sua interpelação, foi se ter deixado contaminar por práticas delituosas, e, mais importante ainda, ter levado o país a uma crise econômica que impossibilitava a própria sustentação da política social e não ter tido força, ou vontade, para redistribuir riqueza por meio de mudanças estruturais.

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