- O Estado de S.Paulo
Vê-se, no palimpsesto da história política, que todo regime social ou de Estado se corrompe
Em artigo recente (A indulgência perpétua das castas prostitutas, Estado, 23/8, A2), José Nêumanne Pinto aponta a bacanal dos poderosos instalados nos palácios. O jornalista evidencia os absurdos do voto reduzido à compra e venda, sob o comando de velhos caciques e de outros mais jovens, nada cândidos. O termo “candidato” vem da velha Roma. Ali, os pretendentes aos cargos envergavam vestes alvas para mostrar almas limpas. Não apenas na política havia tal exigência. O futuro esposo usava vestes brancas. Na peça Casina, de Plauto, o noivo é dito candidatus. No vocabulário romano, a candidez pública entra numa rica constelação de significados éticos. Ela sintetiza os vocábulos ao redor de honos, homenagem devida ao respeito por alguém, de honestas, que, em companhia de auctoritas e gravitas, distinguem os dirigentes. Os eleitores deveriam apoiar quem possuía autoridade de comportamento, garantindo respeito ao Estado. Sem tais elementos, as leis não seriam obedecidas, desapareceria a fides publica. Hanna Arendt comenta: “Se você precisa gritar para que alguém deixe seu quarto, falta-lhe autoridade”. Ah, se ela ouvisse os impropérios dos nossos senadores e deputados! Um legislador deve exibir gravidade em palavras e atos. É semelhante universo semântico que recolhe o termo “candidato”.
Deixemos a República de Roma, sigamos para Atenas, paradigma democrático. Diz Platão que cidade onde comanda o vulgo, fera de mil cabeças, cada um se comporta do jeito que lhe apraz, assume atitudes privadas e públicas violentas. A lei contra a hybris (o abuso do fraco pelo mais forte) perde sentido. A democracia licenciosa é “como um manto de muitas cores, matizado com toda espécie de tons.
Embevecidas pela variedade do colorido, (...) muitas pessoas julgam essa forma de governo a mais bela”. Com o “direito” de todo cidadão obedecer apenas a si mesmo falece a democracia. A massa só acolhe elogios e os candidatos prometem obedecer os que se recusam a seguir as normas. Os disciplinados cometeriam a tolice de respeitar um texto desprovido de força armada. De pouco adianta, constata Platão, justiça rigorosa em palavras, mas ineficaz. O filósofo observa que muitos condenados pelos tribunais passeiam, incólumes, pelas ruas de Atenas.
Se estivesse no Brasil, a experiência seria idêntica. No Congresso Nacional temos casos estarrecedores de impunidade. Políticos têm prerrogativas tirânicas. “Tirano é o governante que usa os bens dos governados como se fossem seus” (Jean Bodin). Os abusos oficiais se refletem nos hábitos particulares. Na democracia sem limites, como ninguém pode ter autoridade, o professor adula e tem medo dos alunos, os velhos imitam os jovens “a fim de não parecerem aborrecidos e autoritários” (República, 563a).
A paixão pelo ganho, no mundo oligárquico – forma social e política anterior à democracia –, narra Platão, se expande pela sociedade. Todos nela desejam o seu lote. Resulta acrescida a desigualdade de bens. Com a democracia vem a promessa de riqueza para todos, somada à igualdade e à liberdade para atingir os próprios alvos. Aproveitando a cobiça universal, o demagogo acena com cofres cheios em todo lar. A técnica do tirano e demagogo é a lisonja. Como o camaleão, ele muda a cor do discurso conforme a oportunidade e a plateia. O único colorido que lhe escapa, comenta Plutarco, é o branco (Como distinguir o adulador do amigo). O demagogo é o mais antigo cliente do marketing político.
Depois da brancura romana e da crítica à democracia, escutemos Norberto Bobbio. “No mercado político democrático o poder se conquista com votos, um dos modos de conquistar votos é comprá-los e um dos modos para se livrar das despesas é servir-se do poder conquistado para conseguir benefícios mesmo pecuniários dos que possam receber vantagens de semelhante poder. (…) Considerada a arena política como uma forma de mercado, onde tudo é mercadoria, ou coisa comprável e vendível, o político se apresenta num momento como comprador (do voto), num segundo momento como vendedor (dos recursos públicos dos quais, graças aos votos, se tornou potencial dispensador)”. (Cf. “Quale il Rimedio?” In L’Utopia Capovolta, 1990).
É compreensível a indignação de Nêumanne Pinto. Eu mesmo já publiquei algo na sua linha. Ao me levantar contra abusos do Parlamento, escrevi na Folha de S.Paulo o artigo intitulado O prostíbulo risonho. Tive aborrecimentos, porque o “centrão” me perseguiu sob Roberto Cardoso Alves, o político que batizou a troca fisiológica entre Legislativo e Executivo: “É dando que se recebe”. O mercado político das pulgas entrava em seus momentos de glória, prenunciando estadistas como Eduardo Cunha.
Mas qual elo existe entre a alvura do político romano, a policromia democrática em Platão e o mercado eleitoral descrito por Norberto Bobbio? No palimpsesto trazido pela história política, uma constante: todo regime social ou de Estado se corrompe. Nenhuma reforma pode mudar o desastre. E tal coisa não é um truísmo, mas destino a ser encarado pelos que respeitam a liberdade e o direito. Os gênios que citamos buscaram remédios para a pavorosa Fortuna. Após a democracia ateniense, veio o duro imperialismo macedônico. Depois da República romana, chegou a ditadura corrupta de Cesar. O nazismo sucedeu à República de Weimar. O culto a Stalin brotou após a revolução de 1917. Lição de prudência encontra-se em Maquiavel.
Na Carta a Vetori, ele confessa abandonar a mesquinhez cotidiana, os interesses dos homens comuns. Bem vestido, eis o autor do Príncipe em conversa com os pensadores antigos. Pena que na política brasileira não ocorram tais diálogos. No Congresso, a leitura se restringe ao Diário Oficial, onde são anunciados os pagamentos pelos votos vendidos e comprados. Só nos restou a torpeza das enlameadas e obscuras reformas políticas, falsas como as moedas de R$ 3.
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Professor da Unicamp, é autor de 'Razão de Estado e Outros Estados da Razão'
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