Por Cristian Klein | Valor Econômico
RIO - O conflito aberto entre os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso expôs as fragilidades da instituição e representou um novo capítulo do mal-estar e dos antagonismos na mais alta Corte do país. É o que afirma o professor de direito constitucional da FGV-Rio, Thomaz Pereira, para quem os magistrados foram além das animosidades que se tornaram frequentes entre ministros do Supremo nos últimos anos.
Não se tratou de uma discussão respeitosa, baseada em visões de mundo diferentes, sublinha. "Foi mais grave do que isso. As acusações extrapolaram os motivos ideológicos. Eram críticas ao comportamento dos ministros", diz Pereira.
Num bate-boca no plenário, na quinta-feira, Barroso acusou Gilmar de ter "leniência em relação à criminalidade do colarinho branco" e mudar "a jurisprudência de acordo com o réu". "Isso é Estado de compadrio. Juiz não pode ter correligionário", afirmou, ao criticar decisões em que Gilmar soltou presos, especialmente pela Operação Lava-Jato. O ministro rebateu dizendo não ser "advogado de bandidos internacionais", numa referência ao período em que Barroso defendeu o ex-ativista político italiano Cesare Battisti.
Pereira discorda das avaliações de que a presidente do STF, Cármen Lúcia, tenha perdido o controle da Corte. "Ela fez intervenções, mas no fim das contas é apenas uma ministra entre os 11. A presidência é exercida de forma rotativa. Ela não foi eleita pela maioria e não tem recursos para punir", diz. "Sozinha, por mais que tenha boas intenções, não consegue limitar o comportamento dos ministros sem a colaboração dos demais", acrescenta. O especialista afirma que seria preciso que os ministros se unissem para constranger comportamentos que afetem a imagem da instituição - ou que cada um deles se limitasse sozinho.
No entanto, diz, o desenho institucional da Suprema Corte favorece os individualismos dos magistrados e dificulta sua atuação como um colegiado. Pereira cita três grandes poderes individuais à disposição dos ministros brasileiros: a capacidade de decidir por liminares, de estabelecer o momento em que um processo será pautado, quando se é relator; e o poder de pedir vista e paralisar o julgamento. Em cortes de outros países, diz, as decisões são mais coletivas, e é preciso que o magistrado convença os colegas para formar maioria na direção desejada. Nos Estados Unidos, cuja Suprema Corte é muito dividida, lembra, há uma votação para se escolher um número restrito de casos que serão julgados a cada ano. "Naturalmente, isso incentiva o comportamento mais coletivo", diz.
No Brasil, em contraste, os ministros do STF têm muito poder individualizado, sem freios institucionais que inibam integrantes de perfil mais autocentrado. A ausência de um mandato - na Alemanha, por exemplo, é de 12 anos - e a longa permanência até a aposentadoria aos 75 anos reduzem a 'accountability' dos ministros, que têm a certeza de que não serão removidos da função, exceto pela remota probabilidade de impeachment, ressalta.
Com tanto poder, os ministros do STF "não têm nada a temer" e seu comportamento é dificilmente limitado pelos pares, o que prejudica a imagem da instituição. Para Pereira, o Supremo padece da chamada tragédia dos comuns (ou dos bens comuns), conceito popularizado pelo ecologista Garrett Hardin, em 1968. Ele descreve as situações em que o uso individual de um recurso finito pode levar à superexploração e deteriorar ou esgotar um bem comum, que no caso é o da autoridade da instituição O caso clássico, de Hardin, é o de pastagens compartilhadas por pastores que, ao priorizarem o benefício no aumento de seus rebanhos, acabam por exaurir o bem coletivo e a própria fonte dos ganhos individuais. O fenômeno remete à necessidade de regulação.
Para o professor da FGV, o que tem ocorrido é que, como alguns ministros não estão se autolimitando e, colegiadamente, os ministros não conseguem se unir para limitar uns aos outros, há "um conflito que se individualiza". "O Barroso, por ser crítico a certos comportamentos de Gilmar, tomou ele próprio a iniciativa de criticá-lo publicamente. Isso acontece porque o tribunal, como um todo, é incapaz de fazê-lo de maneira coletiva", afirma.
Em sua opinião, a escalada de embates entre os magistrados do STF pode representar uma inflexão, se houver mobilização da sociedade por mudança na Corte. Pereira vê com bons olhos a introdução de mandatos, mas não engrossa o coro das ressalvas aos supostos efeitos negativos da transmissão pela TV das sessões do Supremo, que estimularia o choque de egos dos ministros. Em sua opinião, o televisionamento permite maior transparência, ao se conhecerem as divergências, e pode até ter inibido que a discussão entre Gilmar e Barroso fosse mais acirrada.
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