- Valor Econômico
Decisão de tutelar a política mantém Judiciário em crise
O domingo prometia ser enfadonho e destituído de maiores emoções. Com o Brasil eliminado e sem jogo programado na Copa, o desalento era inescapável, mas com uma canetada, o desembargador Rogério Favreto resolveu tirar o país da pasmaceira dominical.
O agito não durou muito. As coisas se acomodaram rapidamente. Serviu para mobilizar a galera disposta a ir às redes sociais e se expressar. Na segunda pela manhã, enquanto o pessoal se encaminhava para pegar no batente e o plantão de Favreto chegava ao fim, o evento já era página virada, até mesmo no Facebook.
Não faltaram interpretações dos objetivos da operação, dos seus resultados e das suas prováveis consequências. Nada que tivesse validade mais extensa que a medida decretada pelo desembargador de plantão. Ninguém mudou de posição em função do episódio. Quem vê como um perseguido político e o adora, continua a defender sua candidatura com o mesmo ardor que o fazia antes. Quem idolatra Moro, manteve o julgador no pedestal e obteve mais uma prova das maquinações de que o PT seria capaz.
O clima foi digno de um domingo futebolístico. As torcidas se armaram para um confronto que mal deu seus primeiros passos. Mas tampouco houve empate. Na impossibilidade de recorrer aos pênaltis para deixar que o acaso decretasse o resultado, todos perderam. No fundo, foi patético.
No cômputo geral, por paradoxal que possa parecer, o árbitro, quer dizer, o Poder Judiciário, foi o maior derrotado. O desembargador Favreto nem precisou se esmerar na doutrina ou encontrar razões sofisticadas para conceder o habeas corpus. O fato novo encontrado nada tinha de novo. Aproveitou a oportunidade oferecida pelo plantão para fazer valer sua vontade.
Mas o despacho de Favreto não foi uma exceção. Nem foi menos arbitrário e político que tantos outros recentes. No caso, os ensinamentos de Sergio Moro têm serventia, pois a expectativa da impunidade há de ter desempenhado um papel. Punições a juízes que extravasam suas prerrogativas são raras, se é que ocorrem.
Mais ao ponto: o exemplo vem de cima, da Corte Suprema, como os sucessivos habeas corpus concedidos por Gilmar Mendes em favor de réus próximos, como o empresário Jacob Barata e o ex-diretor da Dersa, o conhecido Paulo Preto. E há mais, caso da decisão de Ricardo Lewandowski bloqueando privatizações. Já a que beneficiou José Dirceu, colegiada e baseada na 'plausibilidade jurídica' de um pedido de revisão da pena, excedeu todas as expectativas. Orgulhoso, o ministro Gilmar declarou: "Acho que estamos caminhando bem, o Supremo voltando a ser Supremo."
De acordo com os especialistas consultados no domingo, Sergio Moro não teria exorbitado suas prerrogativas ao se pronunciar. Entretanto, isso não é o mesmo que dizer que "andou bem", como escreveu Gebran Neto em seu despacho.
A resposta do "julgador", em férias, foi imediata. A notícia do despacho do desembargador Favreto já chegou ao grande público acompanhada da reação de Sergio Moro. O juiz de primeira instância considerou o desembargador uma "autoridade absolutamente incompetente" para tratar da matéria e afirmou que a Polícia Federal desrespeitaria a lei se cumprisse a ordem de soltura. No mínimo, Moro ofereceu a proteção legal para que a determinação Favreto não fosse cumprida.
Assim, Moro se arrogou ao direito de declarar inválido ato jurídico com o qual não concordava. Obviamente, se ele tem tal direito, outros juízes também o possuem e o conflito entre decisões contraditórias será inevitável.
Com certeza, Moro sabia que não daria a palavra final, mas não quis desperdiçar a chance de ser o primeiro a reagir, constrangendo as autoridades que teriam de se pronunciar a seguir. Talvez, em razão dos atos recentes do Supremo, como a soltura de Dirceu, temesse que Favreto tivesse guarida nas instâncias superiores. Mais plausível, contudo, é que o julgador tenha pretendido deixar claro que a prisão de Lula merece sua eterna vigilância, que ninguém lhe tascará das mãos o laurel de ter condenado e prendido o ex-presidente. Seu despacho foi antes uma declaração politica que jurídica.
Diante do imbróglio inusitado, sabe-se lá qual deveria ter sido a atitude dos plantonistas e presidentes do STJ e STF. O presidente do TRF-4 achou por bem se pronunciar, cassando a decisão de Favreto. A ministra presidente do STF, Cármen Lúcia, levou horas para se pronunciar por meio de nota anódina em que reafirma o óbvio, que "o Poder Judiciário tem ritos e recursos próprios, que devem ser respeitados" e que "a resposta judicial seja oferecida com rapidez e sem quebra da hierarquia". Ora, há juízes que não sabem isso? Há juízes que não seguem esses preceitos fundamentais? Mais ao ponto: na luta de despachos, quem teria ferido esses princípios?
Como é de seu feitio, a ministra presidente subiu no muro e deixou o barco correr. E o fez de forma pública, oficial, sem dizer que estava desrespeitando os ritos ou quebrando a hierarquia. Às vezes, de onde menos se espera é que não vem nada mesmo. É o Supremo sendo o Supremo, inclusive quando decide se omitir. E no que se refere a Lula, enquanto o Supremo não tomar a decisão definitiva, o espaço para explorar a questão continuará aberto. Ao contrário da piada, o bode permanece na sala.
Passada a celeuma, tudo será convenientemente encaminhado para o esquecimento e cada juiz continuará a sentenciar, mandar soltar e prender com a liberdade para explorar as generosas prerrogativas que detêm.
Em resumo, o episódio de domingo retrasado é apenas mais um capítulo da crise do Poder Judiciário brasileiro, crise em que se meteu desde que resolveu que lhe cabia tutelar a política.
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Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.
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