segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Carlos Pereira: Por que tanta antipatia por partidos não ideológicos?

- Ilustríssima / Folha de S. Paulo

Não há contradição na coexistência de partidos protagonistas, mais definidos, e coadjuvantes, bem menos rígidos, no mesmo sistema político. A presença desses dois tipos de legendas é justamente o que constitui os presidencialismos multipartidários.

Siglas de aluguel, pseudopartidos, partidos oportunistas, partidos gelatinosos, partidos sem caráter, partidos não programáticos, ideologicamente amorfos, fisiológicos, não representativos, partidos de uma pessoa só... São apenas alguns dos adjetivos recebidos pela maioria dos partidos políticos no Brasil.

Diante de tamanha carga negativa, não é surpresa que a opinião pública tenha nutrido antipatias em relação ao multipartidarismo e ao presidencialismo de coalizão. A combinação institucional de representação proporcional para o Legislativo e presidencialismo só tem aumentado mundo afora. No Brasil, entretanto, tem sido fortemente criticada por supostamente ser causa de praticamente todas as mazelas da política brasileira.

Outrora visto como solução ao presidencialismo oligárquico e regionalista da Primeira República, nosso sistema eleitoral de voto proporcional com lista aberta agora padeceria de uma grave e terminal enfermidade: a hiperfragmentação partidária e sua decorrente corrupção generalizada.

Essas críticas vêm de praticamente todos os candidatos à Presidência, que apregoam uma espécie de reforma política supostamente redentora. Alguns dos presidenciáveis até mesmo proclamam a necessidade da extinção do próprio sistema político brasileiro.

Ao mesmo tempo, o mundo parece caminhar em direção ao proporcionalismo, em busca de uma ampla inclusão representativa do maior número possível de interesses da sociedade no jogo político. No Brasil, em direção oposta, tem-se discutido a necessidade de mudanças no modelo de representação com a implantação de iniciativas que reforçam o sistema majoritário (como por exemplo, a defesa do voto distrital puro ou misto).

Argumenta-se que esse mecanismo reduziria o número de partidos e seria capaz de aproximar eleitores e legisladores, aumentando assim a representação política.

A esperança é a de que a atual pletora de partidos políticos em nosso sistema seja reduzida, dando aos eleitores melhores condições para identificar as diferenças ideológicas e/ou programáticas entre os partidos, proporcionando assim maior representação e legitimidade política.

Sistemas eleitorais, congruência ideológica e representação política
A grande promessa da democracia representativa seria a congruência entre as preferências dos eleitores e o comportamento dos partidos políticos e dos governos.

O pressuposto básico é que, quanto maior a congruência entre o que a maioria das pessoas pensa e o comportamento dos partidos políticos, melhor a representação política e, consequentemente, maior a qualidade da democracia.

Existe uma literatura acadêmica muito extensa que explora vários aspectos da representação política em perspectiva comparada.

Em especial, há pesquisas que investigam qual sistema eleitoral seria mais representativo: se a representação proporcional, quando a alocação de cadeiras em um distrito eleitoral para o Legislativo obedece a uma distribuição proporcional de votos que os partidos e/ou as coligações receberam nas eleições; ou o majoritário distrital, quando o candidato que recebeu o maior número de votos ocupa a única cadeira disponível em um distrito eleitoral.

Dentre os inúmeros estudos que identificam que sistemas proporcionais ofertam maior congruência entre eleitores e representantes se destaca o livro seminal de Arend Lijphart, "Electoral Systems and Party Systems" (sistemas eleitorais e sistemas partidários), publicado em 1994.

Lijphart demonstra que sistemas proporcionais, especialmente em distritos multinominais e de grande magnitude, apresentam vantagens de representação e de inclusão consideráveis em relação às mais variadas formas de regras eleitorais majoritárias, em que apenas um representante é escolhido por distrito.

Estudos empíricos subsequentes corroboram essas evidências mostrando que sistemas proporcionais, ao permitirem mais inclusão de interesses partidários no jogo político, ofertam maior congruência ideológica entre eleitores, legisladores e governos em cada subconjunto específico do espectro ideológico.

Assim, eleitores de variadas preferências ideológicas teriam condições de se identificarem com partidos capazes de preencher suas expectativas em um sistema de representação proporcional.

Por outro lado, há um conjunto de novos estudos empíricos que rejeita esses achados e argumenta que não existiriam vantagens consistentes no sistema proporcional em promover maior congruência.

Para Hans Keman (2007), por exemplo, na medida em que sistemas majoritários tendem a reduzir para dois o número de partidos competitivos, esses partidos tenderiam a convergir para o eleitor mediano em busca de sobrevivência eleitoral. A convergência ideológica estaria assim garantida nesse sistema político. Dado esse alinhamento, maior representação política seria alcançada em sistemas majoritários, independentemente do partido vencedor.

Embora esse debate pareça estar longe de seu final, o estudo mais recente de Bingham Powell, "The Ideological Congruence Controversy" (a controvérsia da congruência ideológica), apresenta evidências robustas de que não há diferença estatisticamente significante entre regimes proporcionais e majoritários, no que se refere à representação política.

Para Powell, há mecanismos distintos em cada um dos sistemas políticos que alcançam o mesmo fim.

Em outras palavras, se no caso do sistema proporcional a inclusão dos variados interesses da sociedade garante representação, no sistema majoritário a convergência entre o partido vencedor e a preferência do eleitor mediano geraria a representação.

Não parece haver, assim, uma teoria unificada que nos permita prever de forma definitiva qual sistema eleitoral gera mais congruência e, por consequência, qual seria mais representativo. Portanto, a prescrição de um sistema político e eleitoral ideal ancorada na crença de que seria superior ao outro é destituída de suporte científico, seja esse sistema proporcional ou majoritário.

Que trajetória deve um partido seguir?
Em sistemas presidenciais majoritários, como nos EUA, os partidos políticos não têm outra escolha senão jogar o jogo presidencial em busca do eleitor mediano. Por outro lado, partidos políticos em sistemas presidencialistas multipartidários, como o brasileiro, têm escolhas de trajetórias distintas a seguir.

Podem, por exemplo, seguir o caminho majoritário, lançando candidatos à Presidência e procurando ocupar o papel protagonista no jogo político. Também podem decidir trilhar uma trajetória fundamentalmente legislativa.

Em vez de lançar candidatos à Presidência, procurariam ocupar a posição de pivô no congresso, a qual denomino de "legislador mediano". Esses partidos seriam assim âncoras ou coadjuvantes de partidos presidenciais vencedores.

Se um partido decidir jogar o jogo protagonista majoritário e for o vencedor, é esperado que ele obtenha os maiores retornos gerados pelo mercado político. Assim, uma vez alcançado o sucesso eleitoral nas eleições presidenciais, é provável que este partido continue jogando o jogo majoritário ao longo do tempo com o objetivo de acumular os maiores retornos gerados pelo sistema político.

Bons exemplos de partidos protagonistas no Brasil são o PSDB e o PT, que vêm perseguindo de forma consistente a trajetória majoritária, seja na condição de vencedor ou de perdedor.

Outros partidos, como o PDT ou a Rede, também podem ambicionar o protagonismo majoritário, especialmente pelo fato das eleições presidenciais acontecerem em dois turnos. Ou seja, se não há expectativa de um vencedor no primeiro turno, pode valer a pena tentar a sorte numa aposta majoritária. Caso seja perdedor, o partido pode minimizar suas perdas negociando apoio no segundo turno para o potencial majoritário vencedor.

Na maioria das vezes, entretanto, ao perder a eleição presidencial, partidos protagonistas precisam estar prontos para arcar com os custos de jogar o jogo majoritário.

Jogar o jogo de oposição significa necessariamente perda de poder e de acesso a benefícios, pois naturalmente a grande maioria das rendas políticas e financeiras geradas pelo mercado político tende a ser alocada para o vencedor.

Mesmo que se tornem política e financeiramente 'mais pobres', os perdedores majoritários podem decidir continuar jogando o jogo presidencial como oposição, se acreditarem que têm chances reais e candidatos competitivos para se tornarem vencedores nas próximas eleições.

Partidos majoritários perdedores também podem ajustar sua ambição e jogar o jogo do legislador mediano, especialmente quando apresentaram um desempenho ruim na corrida presidencial.

Em tal condição, este "legislador mediano envergonhado" provavelmente desfrutará de uma recompensa menos vantajosa no curto prazo do que se jogasse o jogo do legislador mediano desde o começo. Ou seja, ao invés de ter corrido o risco de jogar o jogo majoritário, apresentando candidato a presidente, mesmo tendo perdido a disputa.

Posicionar-se como o legislador mediano também não é uma estratégia livre de custos. Quase por definição isso significa abrir mão do papel de protagonista conferido pela Presidência da República. Além disso, esse partido não desfrutaria da grande maioria dos benefícios políticos e financeiros que essa posição de destaque oferece.

Por outro lado, o partido legislador mediano poderia ser capaz de extrair vantagens não triviais (ministérios, cargos na burocracia, execução de emendas parlamentares etc.) controladas pelo majoritário vencedor em troca de apoio político no Congresso.

Adicionalmente, com a implementação do financiamento público de campanha no Brasil, não lançar candidato à Presidência libera o orçamento do partido para financiar fundamentalmente candidaturas ao legislativo.

A trajetória do legislador mediano representaria, portanto, o equivalente a uma "zona de conforto", ao gerar uma recompensa intermediária entre o vencedor e o perdedor majoritário sem correr os riscos de disputar a Presidência e amargar os custos da perda.

Partidos do "legislador mediano" tendem a apresentar as seguintes características: não têm um perfil ideológico muito bem definido; participam com muita frequência da coalizão de governo, independentemente da preferência ideológica do presidente; ocupam uma parcela significativa de cadeiras no Congresso; apresentam uma distribuição e capilaridade ampla no território nacional; exercem um papel pivotal dentro do Legislativo; e naturalmente não apresentam candidato à Presidência.

O melhor exemplo de partido coadjuvante no Brasil é o MDB, que desde os fracassos de seus candidatos à Presidência nas eleições de 1989 e 1994 abandonou a estratégia majoritária e ocupou de forma consistente o espaço de legislador mediano, tanto dos governos do PSDB como do PT. Essa trajetória só foi interrompida com o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, quando o MDB foi alçado à condição de majoritário vencedor.

No governo do presidente Temer, não existe um único partido apenas que vem exercendo o papel de legislador mediano. Na realidade, há um conjunto de partidos que se coordenam sob a denominação de "centrão" —ou seja, o novo "MDB do MDB".

É importante fazer uma distinção dos partidos que buscam se comportar como coadjuvantes em coalizões presidenciais (legislador mediano) daqueles que apresentam um perfil fundamentalmente rentista.

Em geral, partidos rentistas são diminutos. São como criaturas artificiais e essencialmente fisiológicas, produtos de peculiaridades do sistema político brasileiro. Como as barreiras à entrada no sistema partidário eram quase inexistentes na legislação eleitoral, esses micropartidos sempre tiveram facilidade para serem incorporados no sistema e se apropriarem de recursos públicos, tais como o fundo partidário e o tempo de propaganda política oficial na TV e no rádio.

Entretanto, com as reformas do sistema eleitoral recentemente promulgadas pelo Congresso Nacional, é esperada uma redução no número de partidos políticos rentistas no Brasil.

De acordo com o novo texto constitucional, cláusulas de desempenho eleitoral foram implementadas a valer já para as eleições de 2018.

Só terá direito ao fundo e ao tempo de propaganda na TV e no rádio o partido que receber ao menos 1,5% dos votos válidos nas eleições de 2018 para a Câmara dos Deputados, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da federação (nove estados), com um mínimo de 1% dos votos válidos em cada uma delas. As cláusulas de barreira se tornarão mais rígidas, gradativamente, até 2030.

A reforma também acaba com as coligações para eleições proporcionais para legisladores, nesse caso a partir das eleições de 2020. O objetivo é impedir que as sobras de votos de um determinado candidato com votação expressiva ajudem a eleger outros legisladores de partidos diferentes, corrompendo assim a real intenção do eleitor.

Fragmentação partidária e governos de coalizão
O grau de fragmentação partidária no sistema político é um dos aspectos decisivos que influenciam a estratégia de partidos em seguirem a trajetória do legislador mediano.

Em um ambiente fragmentado, por exemplo, é mais difícil para a maioria dos partidos apresentar candidatos competitivos para a Presidência. Normalmente, poucos partidos correm o risco de seguir tal trajetória mais competitiva. Por outro lado, uma maior probabilidade de ser bem-sucedido em uma disputa legislativa relativamente menos competitiva torna muito mais confortável para os partidos buscarem apenas o caminho legislativo.

Uma vez que o partido tenha decidido seguir essa trilha política e eleitoral, o melhor que pode fazer é tentar se posicionar como o pivô da coalizão governista, a fim de extrair a maior recompensa possível do vencedor majoritário e ter maior capacidade de influenciar o processo decisório das políticas públicas.

Parece haver necessidade de uma âncora política para melhorar a cooperação quando a legislatura é altamente fragmentada. Na ausência dessa âncora política, um sistema político fragmentado teria uma chance maior de se tornar polarizado e, portanto, disfuncional.

Supondo que um objeto com grande massa tende a atrair gravitacionalmente objetos menores, essa âncora mediana em ambiente fragmentado evitaria muita concentração de poder em um ou em ambos os extremos do espectro ideológico, diminuindo assim a polarização ideológica e potenciais problemas de governabilidade.

No limite, a existência de um partido do legislador mediano e ideologicamente amorfo é a razão pela qual o sistema presidencialista se torna verdadeiramente multipartidário e viável.

Assim como a criação da matéria se deve à atração gravitacional entre os objetos, o partido do legislador mediano impede que dois partidos grandes e ideologicamente opostos atraiam e suguem os partidos menores, pois estes não teriam força de resistir as pressões dos partidos polarizados sem a existência de uma massa mediana que equilibre o sistema.

Portanto, para se proteger, um sistema multipartidário tenderia a gerar tais partidos medianos. Ao invés de desencorajar a criação de novos partidos, como um sistema majoritário normalmente faz, o sistema proporcional, através da figura do legislador mediano, fornece incentivos para novas partes se desenvolverem com o objetivo de ocupar essa posição estratégica e pivotal no sistema político e partidário.

É importante lembrar que muito raramente o partido do presidente (majoritário vencedor) consegue sozinho sair das eleições com a maioria de cadeiras no Legislativo.

Para governar livre da condição desfavorável de minoria, o presidente necessariamente terá que montar coalizões pós-eleitorais. Para tanto, vai necessitar de partidos dispostos a apoiá-lo fazendo parte da sua coalizão.

Os candidatos naturais para essa tarefa coadjuvante são justamente os legisladores medianos. A governabilidade do sistema presidencialista multipartidário estaria assim assegurada mesmo em um ambiente hiperfragmentado como o brasileiro.

Na realidade, tenho realizado pesquisas que demonstram que a fragmentação partidária não apresenta significância estatística, nem para explicar o sucesso do presidente no Congresso, nem tampouco para explicar o custo de governar através de coalizões (artigo publicado na Revista Brasileira de Administração Pública, 2017).

O que realmente importa para o presidente ter sucesso legislativo a um baixo custo de governabilidade é a capacidade do partido majoritário vencedor em gerenciar coalizões formadas por um menor número de parceiros, ideologicamente homogêneos, e compartilhar poder e recursos proporcionais ao peso político de cada parceiro no Legislativo.

Além disso, o partido majoritário vencedor deve ser capaz de montar e gerenciar coalizões que espelhem a preferência mediana do plenário do Congresso.

Os partidos protagonistas, que lançam candidatos à Presidência, tendem portanto a ter perfis ideológicos mais definidos. Para seguir a "trajetória majoritária" é preciso que o partido esteja disposto a apresentar um portfólio de políticas consistentes aos seus potenciais eleitores.

Precisam também administrar seus conflitos intrapartidários e coordenar de forma consistente a plataforma de seu candidato para ser capaz de competir pelas preferências medianas dos eleitores nacionais. Ou seja, os partidos que se dedicam em disputar eleições para o executivo desenvolvem formas organizacionais específicas.

Por outro lado, partidos que miram a trajetória legislativa tendem a apresentar um perfil ideologicamente mais fluido ou mesmo amorfo.

Isso, justamente, é o que atribui flexibilidade a eles para que exerçam o papel de âncora em uma coalizão presidencial, independentemente de quem venha a ser o majoritário vencedor. Quanto mais ideológicos são os partidos, menor a capacidade de exercerem o papel de mediano, amortecendo os conflitos e evitando saídas extremas ou polarizadas.

Consequentemente, não haveria contradição na coexistência de partidos protagonistas e coadjuvantes em um mesmo sistema político. Na realidade, a presença desses dois tipos de partidos é justamente o que constitui os presidencialismos multipartidários.

Portanto, não faz sentido rechaçar partidos não ideológicos no Brasil. Tanto os partidos que têm sido protagonistas (PT e PSDB) quanto os partidos coadjuvantes (MDB ou "centrão") fazem parte do nosso DNA institucional.
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Carlos Pereira, cientista político, é professor titular da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro.

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