Análise de Celso Lafer sobre Hannah Arendt ganha nova edição
Autor brasileiro foi aluno da filósofa judia-alemã e publicou obra de referência em 1976
Rodrigo Petronio* | Aliás / O Estado de S. Paulo
Hannah Arendt é uma das vozes mais importantes da Filosofia do século 20. Dentre os investigadores pioneiros de sua vida e obra, podemos destacar Elizabeth Young-Bruehl, Jerome Kohn e Margaret Canovan. Por uma curiosa coincidência, o leitor brasileiro tem o privilégio de contar com dois intelectuais de altíssima envergadura nessa seara: José Guilherme Merquior e Celso Lafer. Para a felicidade dos admiradores dessa imensa pensadora, a Paz &Terra acaba de lançar a terceira edição de Hannah Arendt: Pensamento, Persuasão e Poder, obra definitiva de Celso Lafer sobre a autora judia-alemã, originalmente publicada em 1979 e agora bastante expandida, enriquecida e atualizada.
Lafer foi aluno de Arendt na Universidade de Cornell, em 1965. E depois se tornou seu interlocutor e um de seus principais comentadores estrangeiros. Esse é um fator decisivo para a perenidade desta obra. Embora os capítulos pertençam a épocas distintas, o conjunto consegue pintar um afresco dinâmico da evolução do pensamento da autora. E pode ser considerada, em termos internacionais, um clássico dos estudos arendtianos.
A obra da autora é analisada passo a passo e cotejada com seus principais comentadores, em um constante cruzamento entre vida e obra, pensamento e realidade. Alguns fios atravessam toda a argumentação. Um deles diz respeito à importância da experiência para a formulação de sua filosofia. Trata-se de uma filosofia política, de uma ética e de uma metafísica cujos conceitos são sempre alimentados pela experiência imediata de Arendt com algumas questões decisivas do século 20.
Para Lafer, essa articulação entre conceito e experiência emerge de um reposicionamento da categoria do juízo. À medida que a vivência da historicidade é sempre dramática e narrativa, a razão não pode se apoiar em um dispositivo universal ou em dados puros do apriorismo. O conteúdo da experiência é produzido a partir de uma cena temporal e afetiva. Toma forma por meio de um emaranhado de escolhas, empenhos, compromissos.
Em outras palavras, ao reler os clássicos do Ocidente, sobretudo Agostinho e Kant, Arendt estabelece um novo estatuto para o juízo e para a contingência. A rede intersubjetiva de juízos singulares e contingentes seria o insumo da vida do espírito. E, portanto, a intersubjetividade seria a região emergente das formas de vida comuns e compartilhadas, ou seja, de toda política, na acepção mais vasta desse conceito, e não a aspiração a uma eventual universalidade abstrata.
Arendt teria encontrado desse modo um meio caminho entre a deontologia (universalismo formal) da razão pura e o consequencialismo utilitarista e liberal. Por isso o projeto de sua obra segue três vetores: o pensar, o querer e o julgar. Os atos intencionais, a dimensão volitiva e a esfera dos valores são inseparáveis. Seriam três facetas da vida do espírito em sua totalidade. Esses matizes de seu pensamento geraram dificuldades de compreensão por parte de seus críticos, frustrados diante da impossibilidade de enquadrá-la na vertente liberal-conservadora ou social-progressista.
Lafer esquadrinha cada detalhe desse mosaico vivo de referências. Demonstra a oposição estrutural entre violência e poder. E, ao fazê-lo, explicita as contradições de reivindicações sociais que se apoiam na deslegitimação das instituições. O retrato sobressai como a síntese entre pensamentos monistas-centrípetos e pluralistas-centrífugos.
Outro aspecto importante esmiuçado por Lafer se refere às três experiências do espírito: o animal laborans, o homo faber e a vita activa. A estrutura tridimensional não pode ser empobrecida por nenhum sistema de produção ou nenhum regime de poder. Diferente da ênfase dada à mortalidade, Arendt lança luzes sobre a condição humana, centrada na noção de natalidade. O humano é um animal em constante nascimento. Essa reorientação demarca as diferenças entre seu pensamento e as filosofias de seu antigo mestre Heidegger.
Semelhante àquela razão vital perseguida por Ortega y Gasset, Arendt teria perseguido a compreensão de uma racionalidade mergulhada na contingência e na experiência. Por isso, o papel decisivo desempenhado pelo juízo. Contudo, a faculdade de julgar é entendida como arena da liberdade concreta e efetiva de cada ser singular, em cada circunstância e escolha. Não como momento negativo de uma razão que se realiza na história como processão de um Espírito universal ou como conjunto de contradições inerentes aos processos materiais, como ocorre em Hegel e Marx.
Um dos pontos altos da obra se encontra nos retratos e espelhamentos entre a autora e nomes como Octavio Paz, Norberto Bobbio e Isaiah Berlim. A diversidade ideológica, metodológica e conceitual dos autores e obras referidos é uma aula de democracia e de pluralismo. Em tempos estranhos, confusos e sombrios, essa parece ser a mensagem subterrânea de Arendt para o presente. E essa é a mensagem de Lafer ao futuro.
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*Rodrigo Petronio é escritor, filósofo, professor da Faap e pós-doutorando no TIDD/PUC-SP
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