- Valor Econômico
Ninguém contribuiu mais para a operação desastrada que Gilmar
"A prefeitura é, tradicionalmente, ao lado da vereança e da promotoria pública, um dos primeiros degraus da carreira política em nossa terra". O juízo é de Victor Nunes Leal, autor do clássico "Coronelismo, Enxada e Voto", escrito em 1949. A constatação se aplica à Primeira (1889-1930) e à Terceira República (1945-1964).
A Constituição de 1988 veda que promotores concorram a cargos eletivos. Foi o preço que a corporação aceitou pagar pelo reforço de seu poder e de sua autonomia.
Promotores obtêm seus cargos por meio de concursos. Para todos os efeitos, uma vez admitidos na carreira, exercem suas funções de defensores do povo pelo resto da vida. O controle e a fiscalização são mínimos, para não dizer que inexistem. Prevalecem a responsabilidade e a ética individual. Em português corrente: no interior da instituição, cada um faz o que acha certo.
Prefeitos e vereadores, como de resto os demais políticos, são eleitos e seus mandatos são renovados em intervalos regulares. No Brasil, as taxas de reeleição são altas, mas a anos luz de distância das verificadas nos Estados Unidos, onde cadeiras na Câmara são quase vitalícias.
O ministro Luís Roberto Barroso acredita que concursos têm sido mais democráticos do que eleições. Por meio de concursos, afirma o ministro, "pessoas vindas de diferentes origens sociais, desde que tenham cursado uma faculdade de direito e tenham feito um estudo sistemático aplicado, podem ingressar na magistratura". O mesmo raciocínio, obviamente, se estende ao Ministério Público.
Por outro lado, afirma o ministro, "o acesso a uma vaga no Congresso envolve um custo financeiro elevado, que obriga o candidato, com frequência, a buscar financiamento e parceria com diferentes atores econômicos e empresariais."
Baseado neste contraste, o ministro conclui que os que obtêm seus cargos por concurso "são capazes de representar melhor - ou com mais independência - a sociedade" do que aqueles que dependem de eleições.
O ministro Gilmar Mendes não tem tanta certeza de que os concursados tenham tamanha independência política. Pelo menos é o que se depreende de suas declarações e atos durante a semana. Gilmar começou por criticar abertamente os promotores que reabriram as investigações contra os candidatos Geraldo Alckmin e Fernando Haddad. Após afirmar que estaríamos diante de um "abuso de poder de litigar", o ministro defendeu cautela e moderação, pois "do contrário, daqui a pouco nós podemos inclusive tumultuar o pleito eleitoral. Sabemos lá que tipo de consórcio há entre um grupo de investigação e um dado candidato."
Assim, onde o iluminista Barroso enxerga independência e capacidade de ditar rumos, o realista Gilmar vê "consórcios" voltados a ajudar determinados candidatos.
A prisão de Beto Richa reforçou os temores de Gilmar Mendes, que passou das declarações à ação. Segundo a "Folha de S. Paulo" deste sábado, Gilmar teria concedido um "salvo-conduto ao tucano para qualquer ordem de prisão preventiva." Ao justificar sua decisão, o ministro argumentou que "tal prisão tem fundo político, com reflexos sobre o próprio sistema democrático e a regularidade das eleições que se avizinham."
Dias antes, Gilmar Mendes havia questionado as consequências políticas de sua própria atuação: "Nós não estamos percebendo isso, que nós estamos tentando interferir demais na política? Será que nós somos tolos? É um quadro realmente sem noção. Mas sem noção vocês [imprensa], sem noção nós, sem noção juízes e promotores."
O ensaio de autocrítica parou aí. Seria demais esperar que Gilmar Mendes fosse adiante e se dispusesse a elencar suas contribuições para gerar o "quadro realmente sem noção" em que nos encontraríamos.
Político e dependendo dos votos para manter seu cargo, Tasso Jereissati pode ser mais franco e incisivo. Entrevistado pelo "Estado de S. Paulo", o senador foi direto ao ponto: "O partido cometeu um conjunto de erros memoráveis. O primeiro foi questionar o resultado eleitoral. Começou no dia seguinte (à eleição). Não questionamos as instituições, respeitamos a democracia. O segundo erro foi votar contra princípios básicos nossos, sobretudo na economia, só para ser contra o PT. Mas o grande erro, e boa parte do PSDB se opôs a isso, foi entrar no governo Temer. Foi a gota d'água, junto com os problemas do Aécio (Neves)."
Os dois grandes erros citados, a contestação do resultado eleitoral e o apoio ao governo Temer, não podem ser dissociados, pois além de questionar a integridade das urnas eletrônicas, associando-se aos questionamentos de Bolsonaro, o PSDB entrou com pedido para impugnar as contas da campanha da chapa Dilma-Temer. Ninguém contribuiu mais para esta operação desastrada do que Gilmar Mendes. O ministro ressuscitou o processo engavetado para fustigar Dilma apenas para dar o voto de minerva que salvou o mandato de Temer. Em seu voto, Gilmar deixou claro que o pau que dera em Francisco não daria em Chico.
Para voltar a "Coronelismo, Enxada e Voto", a prefeitura e a vereança continuam a ser os primeiros degraus da carreira política no Brasil. Promotores e juízes, impedidos de se candidatar, não se afastaram inteiramente da política e, muito menos, das lutas partidárias. Victor Nunes Leal, vale lembrar, foi membro do Supremo Tribunal Federal, do qual foi afastado pelo governo militar. Uma coisa é certa, Leal entendia melhor o processo eleitoral de seu tempo que seus sucessores.
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Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.
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