- O Estado de S.Paulo
Que o povo, com a plenitude de sua liberdade, vote e decida o seu futuro
A democracia no Brasil não é mais a “plantinha tenra” a que se referia João Mangabeira, constituinte de 1934, preso por sua luta contra a ditadura do Estado Novo. Tivemos na nossa História republicana pequenos oásis democráticos no meio de longos períodos de regimes de força. A Constituição de 1988, contudo, promoveu a redemocratização do País, em 5 de outubro daquele ano, e tem garantido a liberdade e a plenitude do regime democrático por mais de 30 anos.
A democracia brasileira, pois, germinou, cresceu e se enraizou na sociedade, tornando sólidas suas instituições. Como observou, com lucidez e sabedoria, em recente pronunciamento a eminente ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE): “No Brasil as instituições estão funcionando normalmente. E juiz algum no País se deixa abalar por qualquer manifestação que possa eventualmente ser compreendida como conteúdo inadequado”.
As eleições presidenciais de 2018 foram precedidas das eleições presidenciais de 1989, 1994, 1998, 2002, 2006, 2010 e 2014, todas realizadas dentro da normalidade democrática, respeitando a liberdade de voto e a lisura dos pleitos, sob os auspícios do TSE. É natural, porém, numa democracia - em que há diversidade e pluralismo político-ideológico - que a competição eleitoral possa tornar-se exacerbada. Tal tem ocorrido, até em recentes eleições, em países de longa experiência democrática, como EUA, França, Alemanha e Itália e outros onde há alternância do poder entre partidos políticos com visões de mundo diametralmente opostas em muitos aspectos - democratas e republicanos, socialistas e conservadores, trabalhistas e liberais, social-democratas e democratas cristãos, etc. - sem que tenha havido ruptura institucional.
Na República e na democracia, por definição, o poder político é temporário: não é vitalício e muito menos hereditário ou tutelado. O poder é também limitado, devendo ser exercido com o devido respeito à Constituição, às leis e aos direitos e liberdades fundamentais. Numa democracia, portanto, deve haver a alternância do poder, não devendo nenhum partido político pretender nele se eternizar.
A Constituição de 1988, portanto, deve ser mantida e respeitada. Preconizar sua abolição mediante constituinte plebiscitária, fundada em maiorias eventuais, é atentar contra o Estado Democrático de Direito. Aliás, esse é o modelo de pseudodemocracia de país latino-americano, cuja população tem abandonado seu território, desolada com o desabastecimento, o desemprego e a repressão às liberdades democráticas. As supostas maiorias, na verdade, formam-se aí sem plena liberdade de manifestação, de informação e de imprensa.
Por outro lado, pretender reformar a Constituição de 88 visando a realizar o “controle social” do Poder Judiciário, do Ministério Público e da imprensa, sob a alegação de perseguição política contra próceres partidários condenados por crimes de corrupção, é violar três pilares básicos do regime democrático garantidos pela Constituição. Tal “controle social” significaria restrições à independência dos juízes e do Ministério Público (mediante eliminação dos poderes de investigação e revogação da lei da delação premiada, dentre outras medidas) e restrições à liberdade de imprensa.
Tal pretensão, contudo, é absolutamente inviável do ponto de vista jurídico, pois a separação dos Poderes e a independência do Judiciário, bem como a liberdade de imprensa, são cláusulas pétreas asseguradas na Constituição, não podendo sequer ser objeto de deliberação qualquer proposta de emenda constitucional tendente à sua abolição (CF, artigos 2.º, 5.º, inciso IX, 220, caput e § 1.º, e 60, § 4.º, incisos II e IV). E a independência funcional é princípio institucional do Ministério Público, estabelecido na Constituição, que também define como crime de responsabilidade qualquer atentado contra o livre exercício de suas funções (artigos 127, § 1.º, e 85, inciso II). Na verdade, preconizar limitações ao livre exercício do Poder Judiciário, do Ministério Público e da informação jornalística, promovendo a censura política, é premeditar o cometimento de crimes de responsabilidade.
Reformas da Constituição devem ser realizadas, sim, mas para reduzir o descalabro das contas públicas e o desemprego e combater a corrupção sistêmica, que causaram a maior crise ética, econômica e social do País nos últimos anos e o impeachment. A prática de crimes de responsabilidade - contrariando a Constituição, a lei orçamentária e a Lei de Responsabilidade Fiscal -, além da incompetência na gestão administrativa, da falta de zelo pela probidade e da prática de corrupção e outros crimes contra o patrimônio público, tudo isso tornou indispensáveis e urgentes tais reformas.
É preciso fazer as reformas da Previdência, fiscal e política. A seguridade social, que abrange os serviços de saúde, previdência e assistência social, ficará praticamente inviabilizada sem a devida reforma. A tributação das atividades econômicas produtivas deve ser reduzida, permitindo a maior criação de empregos e promovendo simultaneamente o rigoroso combate à sonegação fiscal. A cláusula de desempenho deve ser efetivada com urgência, para evitar a fragmentação partidária excessiva, deletéria à democracia - que dificulta a governabilidade com cerca de 30 partidos políticos no Congresso Nacional -, devendo ainda ser abolido o sistema proporcional, que tem provocado tantas distorções, e introduzido o sistema distrital misto, que permite aos eleitores maior conhecimento e avaliação de seus representantes no Legislativo.
A Justiça Eleitoral foi criada para garantir a verdade eleitoral, isto é, a livre manifestação da vontade popular pelo voto. O voto direto, secreto, universal e periódico é garantido em cláusula pétrea da Constituição. Que o povo brasileiro, com a plenitude de sua liberdade, sem quaisquer embaraços, a despeito da efervescência dos debates e de eventual desvario homicida, não se abale, vote - o voto livre - e decida sobre o futuro da democracia brasileira.
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* Doutor em Direito por Yale, professor da UNB, foi Procurador-Geral da República (1995-2003)
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