Eu & Fim de Semana | Valor Econômico
"As coisas vão abaixo; o centro cede", escreveu William Butler Yeats, o grande poeta irlandês, em "A Segunda Vinda". Yeats capturou a sensação de desarticulação sociopolítica na Europa após a Primeira Guerra, que levaria, depois da crise financeira de 1929 e a depressão que se seguiu, à ascensão de Hitler. Mas suas linhas se aplicam às políticas de muitas democracias ocidentais no momento e especialmente ao Brasil, onde o colapso do amplo centro político foi assustadoramente repentino.
Há dois anos, as eleições municipais realizadas pouco depois do impeachment de Dilma Rousseff pareciam passar uma mensagem clara. De um lado, os eleitores bateram no PT: o partido elegeu apenas 254 prefeitos de um total de mais de 5,5 mil. De outro, o PSDB conquistou 803 prefeituras, em comparação às anteriores 701, enquanto seu provável aliado, o MDB, conseguiu 1.038. No modelo que a política brasileira vem seguindo desde 1994, esse resultado apontava para uma vitória fácil do PSDB nas eleições presidenciais deste ano e o declínio do PT.
Mas o modelo foi destruído. Os brasileiros enfrentam uma escolha não invejável entre dois extremos. A moderação que caracterizou a política brasileira na maior parte do atual período democrático se foi. De um lado, Jair Bolsonaro, com sua nostalgia da ditadura de 1964-1985 e seu entusiasmo por Augusto Pinochet, personifica o surgimento de uma direita radical e retoricamente não democrática, com um grau sem precedentes de apoio público.
Do outro lado encontra-se um PT que persiste no erro representado pelo adversário de Bolsonaro no segundo turno, Fernando Haddad. O partido não fez uma autocrítica, nem pediu desculpas pela administração desastrosa da economia sob o governo de Dilma Rousseff ou pela corrupção sistêmica sobre a qual ele presidiu. No primeiro turno, o partido fez uma campanha baseada numa plataforma que prometia repetição dos erros econômicos do passado e se recusou a criticar a ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela.
É claro que o colapso do centro no Brasil faz parte de um fenômeno global. Nos Estados Unidos, Donald Trump abraça um nacionalismo racista e vem espezinhando várias convenções não escritas da democracia americana, com seu desprezo a regras contra conflitos de interesses, críticas rotineiras à imprensa livre e um sectarismo grosseiro com instituições independentes, como a Suprema Corte e o FBI. No Reino Unido, Theresa May, uma conservadora moderada, luta contra uma direita reacionária liderada por Boris Johnson, para amenizar os danos autoinfligidos ao país pelo Brexit, enquanto o Partido Trabalhista foi capturado por Jeremy Corbyn, um "filo-trotskista".
Pela Europa, partidos extremistas estão em marcha. Pelo mundo, o mesmo ocorre com autocratas eleitos, de Recep Tayyip Erdogan, na Turquia, a Rodrigo Duterte, nas Filipinas. O que o escritor Fareed Zakaria chamou de "democracias iliberais", nas quais as eleições continuam, mas não a prática de governos democráticos, com seus pesos, contrapesos e regras de justiça, tornou-se o fenômeno político característico do nosso tempo.
Em seu mais recente relatório, intitulado "Democracia em Crise", a organização não governamental Freedom House concluiu: "Os direitos políticos e as liberdades civis caíram em 2017, ao redor do mundo, ao seu ponto mais baixo em mais de uma década, estendendo um período caracterizado por autocratas entusiasmados e democracias sitiadas, com a abdicação dos Estados Unidos de seu papel de liderança na luta global pela liberdade humana".
Nas eleições recentes na América Latina, o centro esteve sob pressão. No México, Andrés Manuel López Obrador chegou ao poder com uma cruzada contra "a máfia do poder", uma plataforma nova no México, e um projeto para recentralizar o poder (o tempo dirá se democraticamente ou não). Na Colômbia, apesar de uma tradição de moderação política, os centristas definharam. O conservador Iván Duque venceu o segundo turno contra Gustavo Petro, da esquerda populista. Na Costa Rica, nenhum dos partidos do centro, que dominaram o governo desde 1948, passou para o segundo turno das eleições. Na Nicarágua, Daniel Ortega seguiu a trilha de Maduro no caminho da ditadura.
Os fatores por trás do colapso do centro variam de país para país. O fator comum é que as elites políticas são amplamente vistas como atuantes em benefício próprio, não se preocupando mais em proteger e promover os interesses das pessoas comuns. Isso levou à busca de salvadores, nos extremos. Tanto Bolsonaro como López Obrador, de maneiras contrastantes, são supostos salvadores da pátria. Nos EUA e na Europa, a credibilidade dessas elites foi duramente atingida pela crise financeira de 2008-2009 e suas consequências.
A globalização transferiu muitos empregos do setor industrial do mundo desenvolvido para China, outros países asiáticos e, sim, para partes da América Latina (embora não muito para o protecionista Brasil). A globalização também alimentou o maior movimento migratório da história. A ampla maioria dos imigrantes trabalha, em vez de viver à custa de benefícios sociais, e eles amenizam o problema demográfico da Europa. Mas sua presença visível contribui para a sensação nas classes trabalhadoras que vêm sofrendo com perda de empregos e estagnação dos salários de que elas "perderam o controle" de suas vidas e ambientes, um sentimento que é explorado pelos demagogos.
No caso do Brasil, substitua a crise financeira de 2008-2009 pela recessão de 2015-2016, provocada pela gestão grosseira da economia por Dilma. Em um país onde o desemprego dobrou e a renda per capita caiu 10%, a indignação popular é inevitável. Substitua o problema de imigração pelo aumento dos crimes violentos e o medo com a falta de segurança, produto do policiamento ineficaz e o colapso dos serviços públicos em razão das receitas mais baixas do governo e prioridades de gastos equivocadas.
A combinação da austeridade econômica e corrupção generalizada levou a indignação popular a ser direcionada para a classe política. Amigos brasileiros pessimistas vêm me lembrando com frequência que na Itália a Operação Mãos Limpas gerou Silvio Berlusconi; agora, ao que parece, a Lava-Jato quase que certamente entregou o Brasil para Jair Bolsonaro, que, após 27 anos no Congresso, conseguiu o feito improvável de se apresentar como um outsider não contaminado pela política tradicional.
A ascensão de Bolsonaro à beira da vitória reescreveu as regras da política no Brasil. De certa forma isso é positivo. A chave automática para o sucesso não são mais as máquinas de clientelismo, gastos de campanha obscenos e tempo de televisão acumulado via coalizões sem nenhuma ideologia a não ser o interesse em assaltar o dinheiro público. Para o bem ou para o mal, eles sucumbiram às redes sociais, com sua câmara de eco de "fake news", mentiras e insultos a adversários.
Bolsonaro também reescreveu a história brasileira. Há poucos antecedentes de apoio massivo à direita radical. A Ação Integralista Brasileira, movimento fascista de Plínio Salgado, por um breve momento arregimentou 100 mil membros na metade da década de 30. De certa forma, Bolsonaro parece uma fusão de Carlos Lacerda ("uma figura nervosa e verbalmente violenta que sempre estava no ataque", conforme definiu um biógrafo) e o general Emílio Garrastazu Médici (cujo governo torturou e matou nos anos de chumbo, ao mesmo tempo em que lançou um ataque desenvolvimentista sobre a Amazônia). Mas, no atual período democrático, poucos políticos vinham querendo se identificar como de direita.
Em retrospecto, os sinais de que o centro estava entrando em colapso eram evidentes, e como alguém que gosta de se ver como um observador experiente do Brasil, me declaro culpado por não ter detectado a magnitude desse colapso. Em março, estive em Eldorado, na periferia de Diadema (SP), como convidado da Acer, projeto comunitário que trabalha duro para fornecer oportunidades aos moradores locais. As pessoas estavam fartas com o aumento da criminalidade e o desemprego e com uma sensação de abandono pelas autoridades.
"Quando saímos de casa não sabemos se voltaremos vivos", lamentou Cleber Souza, o líder da Vila Joaninha, uma ex-favela. Várias pessoas disseram que estavam pensando em votar em Bolsonaro. Um empresário disse que preferia o regime militar. Imaginei que à medida que a campanha engatasse, a tradicional máquina política prevaleceria. Eu estava enganado.
Portanto, quem perdeu o Brasil, ou pelo menos sua moderação política? A culpa precisa ser amplamente distribuída. A começar com Lula e Dilma. Se Bolsonaro tem tanto apoio, isso ocorre principalmente porque ele conseguiu personificar a indignação popular com o PT e seus erros catastróficos. A estratégia de Lula de conseguir uma hegemonia duradoura para o PT envolveu a polarização. Ele demonizou o PSDB, a outra força moderna da política brasileira, classificando-o de "neoliberal", preferindo se aliar às forças mercenárias do MDB e do Centrão.
É claro que essas forças contribuíram bastante para desacreditar as políticas democráticas. Elas incluem Michel Temer, cujas conversas com Joesley Batista desacreditaram suas reformas fiscais, que eram necessárias, ou Gilmar Mendes, cuja recusa em anular a eleição de 2014, apesar de evidências contundentes de financiamentos ilegais, deu a Bolsonaro tempo para ele se organizar. A limpeza da política brasileira é saudável e muito necessária, mas é legítimo perguntar se os promotores da Lava-Jato não se envolveram em alguns momentos num "jacobinismo" destrutivo.
O caixa dois era uma maneira opaca e não democrática de organizar a política. Mas o sistema era assim. Alguns capturados no expurgo eram políticos profissionais honoráveis que jogavam de acordo com as regras do jogo. Por outro lado, os políticos passaram duas décadas falando de reforma política, sem realizá-la.
O próprio PSDB tem grande parte da culpa. Diante das manifestações em massa contra Dilma e o PT em 2013-2015, não respondeu como deveria. Foi condescendente com a corrupção. O projeto de gerações que agora estão na casa dos 60 aos 80 anos não se adaptou às mudanças pelas quais o Brasil passou. Numa era em que a política é determinada pela paixão, em vez da tecnocracia, o partido escolheu um político que não desperta emoção. Ele se dedicou a fazer campanha de uma forma negativa, em vez de propor uma visão alternativa para enfrentar os problemas muito reais aos quais Bolsonaro dá voz. "Os melhores sem suas convicções, os piores com as mais fortes paixões", diz Yeats em "A Segunda Vinda". Ele poderia muito bem estar escrevendo sobre estas eleições.
O que ocorrerá agora com o Brasil? Seja quem for o vencedor do segundo turno, o país aparentemente enfrentará anos de conflitos políticos. Um governo do PT não transformaria o Brasil numa Venezuela, mas poderia muito bem ser vingativo e intolerante. Um presidente Bolsonaro, se ele for escolhido, claramente seria conservador e polarizador. Mas ele seria antidemocrático? Diferentemente de Plínio Salgado, ele não lidera um movimento fascista organizado. Em vez disso, comanda uma corrente autoritária de opinião e vem surfando numa onda justa de indignação popular.
A tarefa dos centristas será transformar a defesa da democracia liberal numa causa popular, mostrando que ela pode resolver os problemas mais prementes do país com muito mais eficiência que o autoritarismo mascarado de liberalismo econômico. Trinta anos após a promulgação da Constituição de 1988, a descida do Brasil à democracia iliberal não é inevitável. Mas é assustadoramente possível. (Tradução de Mario Zammarian)
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Michael Reid é editor sênior da "The Economist" e escreve a coluna Bello, sobre América Latina. Seu livro "O Continente Esquecido - A Batalha pela Alma Latino-Americana" foi publicado em 2017.
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