- O Estado de S. Paulo
A cultura da época substitui a moderação política pela contestação radicalizada, indispõe a sociedade com o modo de ser dos políticos, desdemocratiza o pensamento dos cidadãos.
Logo após o primeiro turno das eleições, passamos a perceber que algo “novo” despontava no Brasil. Multiplicaram-se as informações dando conta de que gays, lésbicas e transexuais, além de negros e ativistas do PT, estavam sendo perseguidos, humilhados e agredidos por apoiadores de Bolsonaro. Sobretudo nas redes, os fatos vêm sendo sistematicamente denunciados, como parte de uma operação de desconstrução do candidato do PSL.
Há muito de fake news, mas inúmeras denúncias têm comprovação e testemunhas. Estudo da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da FGV mostra, por exemplo, que os comentários sobre agressões por motivação política geraram 2,7 milhões de postagens desde que o segundo turno começou, contra 1,1 milhão nos 30 dias anteriores à eleição. É um volume impressionante, sobretudo quando se considera que as agressões são feitas nas redes e também na vida presencial.
As cenas de ativistas de extrema-direita vociferando contra o comunismo, o “vermelho” da esquerda e contra o PT são a prova de que há muita gente querendo atear fogo no convívio social, valendo-se para tanto da ignorância, da violência verbal e da grosseria explícita. São cenas que causam mal-estar, mas pouco mobilizam, tamanho é o grau de estupidez que carregam.
Tais ativistas não são marcianos sugadores de cérebros, nem têm força persuasiva para roubar o discernimento das pessoas. De algum modo, porém, ajudam a que se forme uma massa de gente que acha que discussões de temas polêmicos podem ser resolvidas no grito, sem mediações racionais, sem regras.
Como é uma gente insatisfeita com tudo, fica fácil imaginar o tamanho do problema.
Agressões e piadas
A intolerância política cresceu muito por conta das campanhas eleitorais, que traduziram em termos públicos algo que estava “escondido” na sociedade. Discursos de ódio, vindos sobretudo de ativistas da extrema-direita, passaram a frequentar o espaço público e a desafiar a democracia. Ora os discursos são diretos, agridem por palavras duras, ofensas e atos performáticos, ora são dissimulados, via ironias e piadas, que humilham e discriminam muitas vezes de modo ainda mais ferino.
A extrema-direita é a principal fonte geradora das agressões. É imbatível nesse quesito. Mas não é a única.
O “ódio” que é hoje verbalizado se alimenta de uma violência que está enraizada na vida social brasileira. Vem de longe e mostra a cara sob a forma da criminalidade, da miséria, da insegurança, da ação socialmente seletiva da polícia. Manifesta-se entre os desvãos da “cordialidade” inerente à nossa cultura e a desigualdade social, a injustiça flagrante, as hierarquias sociais promotoras de separações e discriminações. Nossa “cordialidade” nunca foi sinônimo de simpatia. Ganhou contornos mais dramáticos nas últimas décadas, impulsionada pela desorganização familiar, pelo desemprego, pelo fracasso do sistema educacional e pelas alterações na estratificação social. A cultura da época também deu sua contribuição, ao promover a substituição da moderação política pela contestação radicalizada, ao indispor parte gigantesca da sociedade ao modo de ser dos políticos e às regras do sistema político, ao “desdemocratizar” o pensamento mais espontâneo dos cidadãos.
Essa derivação da sociabilidade brasileira trouxe consigo uma cultura própria. No embalo da reorganização “líquida” da vida social e de uma tradução equivocada da “malandragem”, abandonaram-se as práticas educadas e gentis, a delicadeza para com o outro, a empatia. A suavidade foi substituída pela brutalidade, o silêncio discreto pelo ruído gratuito e desrespeitoso. Ser manso e sereno passou a ser visto como comportamento conciliador, frouxo demais, suspeito, típico de gente que não vai à luta.
Nessa derivação, houve pouca ideologia e quase nenhuma consciência de “ódio”. O efeito foi mais degradação da convivência.
Ambiente agressivo
Criou-se assim um ambiente favorável à agressividade, que terminou por ser “naturalizada”. Aos poucos foi sendo apropriada pelas correntes políticas, virando símbolo identitário. Mesmo as esquerdas se deixaram levar por isso, ao trabalharem cada vez mais pela estigmatização de seus adversários e pela ênfase em contraposições aparentemente mobilizadoras tipo “nós contra eles”.
A extrema-direita só precisou catar os grãos espalhados por esse novo ambiente para construir sua retórica e atuar com base numa “narrativa” que antes só existia de modo inexpressivo. Por esse caminho, de uma maneira que ainda não conseguimos compreender plenamente, chegou à sociedade, mobilizando importantes setores. É uma “narrativa” que mistura anticomunismo com religião, denúncias de corrupção com ataques à esquerda, mercado com Estado, formando uma maçaroca com alto poder tóxico, difícil de ser desenrolada.
A candidatura de Bolsonaro ganhou impulso ao incentivar a violência como recurso de persuasão. Fez isso graças à personalidade e à conduta do próprio candidato, um personagem sem freios moderadores, sem apreço pela democracia, autoritário nas palavras e nos gestos. Ele reagiu aos sinais que vinham de baixo, do cansaço político e do medo dos cidadãos, do seu desejo de autoridade e proteção, e de muitos outros estados de espírito semelhantes. Incentivados por cima, diversos seguidores começaram a espalhar terror na sociedade, ora para denegrir o petismo, ora para agredir minorias, ora para manifestar com veemência seu amor pelo chefe.
A violência ganhou assim uma tradução política e eleitoral baseada no “ódio” (contra ricos, esquerda, minorias, negros, políticos, homoafetivos, mulheres). Substituiu as pressões veladas, as intimidações típicas do voto de cabresto, as chantagens dos poderosos, práticas comuns na sociedade brasileira tradicional, pela agressão verbal nas redes, pela ação performática de grupos fantasiados, pela coação física.
Essa cultura da violência não encontrará barreiras de forma espontânea, sem esforços democráticos e pedagógicos expressivos. Caso se dê a inação dos democratas e dos sistemas geradores de convivência e igualdade, os violentos tenderão a encontrar um ambiente sempre mais favorável à sua pregação e ao seu estilo de atuação. Ganharão um poder de convencimento que não está dado de antemão.
Além da palavra do chefe
Nenhum governo desarmará a bomba do “ódio” e da violência se somente tiver como recurso a palavra do chefe. Não governará, pela direita ou pela esquerda, se tiver na base uma sociedade em crispação, convencida da virtude do “grito”, com bolsões de fanáticos caçando adversários políticos, ativistas, negros, mulheres e minorias. Uma Presidência que interaja com o regime democrático constitucional e com uma sociedade disposta em rede e hiperativa, somente governará se souber produzir paz e harmonia, valendo-se antes de tudo de políticas públicas que promovam inclusão, igualdade e educação (escolar, técnica, política, cívica). Se não agir assim, em pouco tempo será destruída pelas chamas que incentivou ou se recusou a combater.
Num presidencialismo como o nosso, com a população e a cultura política que temos, a “palavra do Presidente” tem peso. Atinge as pessoas, pode mobilizá-las para algo “maior”, reeducá-las e direcioná-las. Pode também levá-las à exasperação, abrindo-lhes as portas do inferno. As instituições do Estado – Executivo, Legislativo, Judiciário – poderão ajudá-lo a agir nesse sentido. Poderão até mesmo forçá-lo a isso, caso necessário. Ou expeli-lo. A escolha será do Presidente: ou seguirá um caminho que ignore os controles democráticos, os freios e contrapesos da democracia representativa, ou irá se ajustar a eles. Ou alimentará uma guerra social fratricida, que o destruirá e a seu governo, ou agirá como estadista, pensando na defesa do Estado e da sociedade.
O clima exasperado da campanha eleitoral precisa ser desativado assim que fechadas as urnas. Precisa ser substituído pela oposição democrática ao eleito, conforme o caso. Insistir em seu prolongamento somente servirá para manter em atividade os vulcões que nos ameaçam e corroem a democracia. Isso caberá ao novo Presidente, mas também aos partidos políticos, à sociedade civil, aos intelectuais e aos cidadãos.
A extrema-direita também fará sua escolha. Ou se constitucionaliza e abraça o Estado de direito, civilizando-se, ou jogará no buraco o País que ela jura amar acima de tudo.
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Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política da Unesp
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