- O Estado de S.Paulo
Parte de nossa sociedade vem demandando a tutela e a censura do Estado
Em curta viagem a Paris e Londres tive a oportunidade de ver lindas exposições: Burne-Jones, Picasso, Basquiat, Miró, Klimt, Bellini e Mantegna. Egon Schielle estava presente nas duas cidades.
Me chamou a atenção o longo período previsto para cada mostra: seis meses para muitas delas, o que não impediu filas imensas por conta de um permanente e grande fluxo de visitantes. Como eu, turistas de todo o mundo, além dos locais, lotavam as salas dos museus. Cultura é business. Cultura é pop.
Bonito de ver foram crianças levadas por seus pais aos museus. Com seus olhares curiosos diante de um Basquiat ou mostrando grande emoção ao ver Miró num filme, ou desenhando com aplicativos no tablet e estudando os folhetos especiais, o público infantil foi um espetáculo à parte. Os pais e avós explicavam aos pequenos detalhes de cada pintura. De geração em geração, comportamento, cultura e história vão sendo transmitidos.
E mesmo nas mostras de Schielle, conhecido por seus nus e desenhos eróticos, as crianças estavam lá. Lembrei imediatamente do boicote ao Queer Museum. Como não refletir sobre o vento conservador que assola o País? Lá, tive uma sensação deliciosa da liberdade que sinto estar perdendo por aqui.
Parte de nossa sociedade vem demandando a tutela e a censura do Estado. Esse vento está soprando também nas escolas, onde nem sequer se garante o domínio da língua portuguesa e as quatro operações, mas as preocupações se concentram em identidade de gênero. A Escola Sem Partido é outro movimento que beira a censura. Retrocesso de um já baixíssimo nível de aprendizado. Fico pensando na minha mãe que estudou em escola pública e tinha orgulho de ter cantado no coro sob regência do professor Villa Lobos.
Não por acaso, andam juntas a onda conservadora e os protestos contra nossa lei de incentivo à cultura, sendo que a maioria dos seus detratores nem conhece seu funcionamento. A revolta com a posição ideológica de artistas vem travestida de um discurso liberal contra qualquer tipo de uso de recursos públicos na forma de incentivos, quase colocando no mesmo patamar o patrimônio cultural e a Zona Franca de Manaus.
Sempre é bom lembrar que a Lei Rouanet foi criada num governo liberal por um liberal. Uma das suas qualidades é usar renúncia fiscal exatamente para impedir o direcionamento ideológico na escolha dos temas e dos artistas, com pouca margem para política cultural de Estado. Poucos se dão conta disso e tratam como se fosse um mercado reservado aos amigos do rei.
Seus críticos são os mesmos que tiram selfies nos museus e em shows no exterior sem perceber que estão curtindo o que pode ser resultado dos incentivos públicos de lá. São os mesmos brasileiros que dizem “Ih, lá vem brasileiro”. Tipo as bilheteiras dos anos 70 que nos alertavam: “Olha que é filme nacional”.
Há poucos anos, Maria Bethânia foi alvo de críticas ao ter um projeto aprovado pela lei por ser uma artista famosa e com público cativo, quando seu sucesso é uma razão para patrociná-la. É preciso ter cuidado para não cair na armadilha de incentivo ao fracasso.
Assim como no mundo inteiro, o Brasil atravessa um período de muita dúvida sobre a relação Estado e liberalismo. Para deixar claro qual o liberalismo que vem por aí, pensadores mais ligados ao futuro governo gostam de se auto denominar liberais conservadores. Eu tenho dificuldades para aceitar a existência de liberdade conservadora. E tenho certeza que sem liberdade a cultura não floresce.
No site do Art Council of England, equivalente à nossa Secretaria de Cultura está definida sua missão: “Patrocinamos, desenvolvemos e investimos em experiências artísticas e culturais que enriquecem a vida das pessoas”. Informam que vão investir 1,45 bilhão de libras entre 2018 e 2022, e mais 860 milhões originados pela loteria nacional, recursos públicos de forma a “levar arte e cultura ao maior número possível de pessoas”.
A cada reforma administrativa, a extinção do Ministério da Cultura é vista como o início do fim, como se sua simples existência pudesse dar um senso de prioridade à área. O debate em torno da Lei Rouanet vem gerando alguns esclarecimentos sobre a política cultural no País. Mas ainda há muito desconhecimento e dúvidas sobre o papel do Estado nesse campo. É um tema relevante e muito difícil, que provoca discussões acaloradas de onde, espero, pode emergir o bom debate. Precisamos falar sobre cultura, e muito, por que sem ela quem somos?
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* Economista e advogada
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