sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Fernando Abrucio: Quando o maior inimigo são os aliados

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Terminada a fase de montagem do ministério, constata-se que o futuro governo vai abrigar diversos grupos e ideias diferentes. Até certo ponto isso é natural, porque governar um país tão heterogêneo como o Brasil significa abrir espaços para várias correntes políticas e sociais. Mas as contradições e ambiguidades que aparecem no discurso dos aliados e em seus interesses não serão facilmente arbitrados pelo presidente eleito. Ao contrário, pode ser que aqueles que hoje estão de mãos dadas com Bolsonaro se tornem sua maior dor de cabeça na lua de mel presidencial.

Geralmente se pensa que o maior adversário de um governo eleito é a oposição derrotada nas urnas. No caso brasileiro, nem sempre isso é verdadeiro, porque há dois vetores de dispersão do poder: a fragmentação do Congresso Nacional, que vem crescendo na última década, e a pluralidade de partidos que elegeram governadores de Estados. No momento atual, a principal oposição é o PT, que tem força importante nas governadorias do Nordeste, mas está longe de ter força institucional para ser um obstáculo ao Executivo federal.

A chance de o PT barrar propostas e projetos do governo Bolsonaro está em se aliar a outras legendas partidárias. E isso não será tão fácil por duas razões. A primeira é que os partidos querem ter uma relação diferente com o petismo, pois temem ser hegemonizados ou, pior, receber respingos do antipetismo e perder votos nas próximas eleições. Em segundo lugar, a situação é de crise de todo o núcleo anterior do sistema partidário, gerando, pelo menos no curto prazo, uma fragilidade em todas as agremiações.

Vale lembrar que, na época do governo FHC, o PT ainda tinha muito mais força nos grupos organizados da sociedade civil, o que lhe conferia um poder de fogo importante no jogo contra o governismo. Atualmente, essa capacidade de aglutinação e apoio social reduziu-se sensivelmente. Vários fatores podem explicar esse fenômeno: mudanças econômicas e demográficas, decepções com o petismo e agora a reforma trabalhista, entre outros, enfraqueceram o suporte do Partido dos Trabalhadores. De todo modo, o PT terá que se voltar novamente às bases do eleitorado para se reconstruir. Mano Brown estava certo.

As outras legendas estão em situação ainda pior, em particular o centro do sistema político, que perdeu votos, cadeiras e rumo. Esperar que a oposição se organize a partir desse grupo é, no curto prazo, pouco provável. Há outros potenciais adversários do presidente Bolsonaro, como os sindicatos (enfraquecidos pela reforma trabalhista), universidades, movimentos sociais, ONGs e até empresários, pois o ministro Paulo Guedes aparentemente quer fazer reformas para mexer com os capitalistas do país, como no caso da mudança do Sistema S.

Todos eles deverão fazer algum barulho e poderão crescer com os erros do governo. Mas, por ora, seu poderio é disperso e não tem a capacidade de paralisar a gestão do presidente Bolsonaro.

Claro que se a lua de mel presidencial for mais curta, as potenciais forças contrárias poderão se agregar numa dinâmica maior, inclusive se aliando aos partidos políticos. Neste sentido, o desafio político maior do novo governo será manter, pelo maior prazo possível, o período de graça junto ao eleitorado. Para alcançar esse objetivo, os aliados devem jogar juntos, transformando-se num time entrosado em termos de ideias e estratégias. Só que os primeiros passos foram mais atribulados do que ensaiados.

O fato é que, mesmo tendo feito escolhas muito independentes em relação aos partidos, o presidente Bolsonaro montou um governo em que há ambiguidades e contradições fortes, além de ter uma base de apoio complexa e inexperiente no jogo político governista. Analisando os dois meses pós-eleição, é possível identificar pelo menos sete grupos disputando o poder nessa primeira fase governamental, embora haja interseções entre eles.

O primeiro é o da família Bolsonaro. Os três filhos têm muita congruência de ideias com o restante do governo, mas têm um estilo peculiar e se constituem, efetivamente, como um grupo que busca influenciar o poder. Foram eles que escolheram os ministros das Relações Exteriores e da Educação, e não grupos religiosos e nem o guru Olavo de Carvalho. Óbvio que construíram legitimações externas, mas são ministérios de sua cota, e logo dois com grande peso na Esplanada. A visão "neocon" que defendem é menos pragmática do que a de outros grupos, porém, ela tem o poder de mobilizar a base mais fiel do bolsonarismo e, o mais importante, de encantar o presidente.

Os militares constituem um segundo grupo dentro do novo governo. Mesmo que Bolsonaro tenha formação militar, ele não se coloca por completo nessa categoria, pois é, acima de tudo, um político de carreira (mesmo que com um discurso de "outsider") e um líder popular. Além disso, os membros de alta patente desse grupo tiveram uma socialização política diferente nos últimos anos, com experiências importantes no plano internacional, que geraram um arsenal de ideias mais pragmático e profissionalizado sobre o que devem ser as políticas públicas quando comparadas às visões dos filhos do presidente. Claro que há semelhanças de pensamento e, sobretudo, um enorme respeito que Bolsonaro nutre pelos seus ex-colegas de caserna. Mas há discordâncias de estilo e da forma como os integrantes das Forças Armadas veem o que seria o lado populista do presidente eleito. Não se espera, de início, grandes divergências aqui, mas esse grupo será um ponto de equilíbrio nas decisões mais difíceis e, principalmente, nos momentos de crise.

Paulo Guedes e sua equipe compõem um terceiro grupo, que ganhou uma enorme importância porque o sucesso inicial do presidente Bolsonaro dependerá muito dos rumos da economia e da capacidade de fazer as reformas, muitas amargas, no Congresso Nacional. Guedes não é superministro apenas pelo fato de ter conquistado boa parte da máquina governamental para si. Sua força estará muito mais em ser o "lado moderno" do governo, aquele que pode fazer o diálogo com o mundo, com as finanças e com todos os fatores de poder que não estão na agenda populista. Ele é o globalista, num governo em que gente forte odeia isso.

O principal "posto Ipiranga" de Bolsonaro, com toda a autonomia que lhe foi conferida, terá dificuldades com outras agendas e grupos presentes no governo. Problemas na política ambiental podem afugentar uma parcela do capital internacional que é fundamental para o processo de privatizações. Do mesmo modo, a venda de alguns produtos pode sofrer com ações da política externa, como a mudança da capital de Israel para Jerusalém. E ninguém sabe, ao fim e ao cabo, se todo o bolsonarismo congressual votará por reformas como a da Previdência.

O quarto grupo é o núcleo de Sérgio Moro, que é composto não só por sua figura emblemática, mas principalmente por um conjunto de burocratas vinculados ao sistema de controles, que se fortaleceu muito nos últimos anos e, seguramente, têm um projeto de poder. A purificação do sistema político pela via do combate à corrupção já teve efeitos no processo político recente. Mas agora Moro é o ministro, o homem da situação, e não apenas um soldado a serviço do Estado impessoal. Todos os aliados que cometerem algum deslize terão de se ver com o novo ministro. Haverá alguém inimputável? A pergunta já pode ser feita para um dos filhos de Bolsonaro e, por ora, Moro mantém um silêncio ensurdecedor.

Mas Moro também terá de cuidar de outros assuntos, principalmente da Segurança Pública. Eis aí uma política pública de difícil resolução no curto prazo, qualquer que seja o ministro ou o governante. A não resolução desse assunto ou, pior, algum episódio mais forte, como a morte de inocentes na Rocinha ou de sem-terra, pode afetar a imagem e o poderio desse grupo.

Os três últimos grupos estão na esfera política propriamente dita. O primeiro são os antigos aliados políticos de Bolsonaro, que perpassam alguns partidos, e cujo principal representante é o ministro Onyx Lorenzoni. O outro é o PSL, partido do presidente e com vários componentes que adotaram uma postura eleitoral muito parecida com a do Bolsonaro candidato. Em geral, são barulhentos e inexperientes no jogo político brasiliense. E, por fim, há as frentes parlamentares, especialmente a ruralista, a evangélica e a da bala. Tal grupo tem intersecções com os dois anteriores, mas seu maior número de parlamentares os diferencia, comportando políticos que sabemos como votam em um assunto, e desconhecemos como farão nos demais.

Há muitas chances de o presidente Bolsonaro conseguir montar uma base politica estável na Câmara, embora tenha mais dificuldades para fazê-lo no Senado, onde a classe política tradicional poderá se unir com entrantes não bolsonaristas. De todo modo, o maior problema aqui estará em juntar os três grupos políticos do bolsonarismo, pois as conversas de Whatsapp e nos restaurantes de Brasília à noite mostram que a briga de poder no governismo será ferrenha. Isso pode custar a perda da presidência de ambas as Casas do Congresso.

O principal papel de Bolsonaro será o de atuar como árbitro desses grupos. Do sucesso dessa empreitada dependerá o tamanho de sua lua de mel. Feliz Natal e excelente 2019 para todos nós.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP,

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